van-gogh-em-domínio-público
Quadro de Van Gogh, em domínio público. (reprodução)

[su_highlight background=”#f70600″ color=”#ffffff”]Adaptado da obra de Sergio Branco.[/su_highlight] (Continuação do artigo anterior.)

Já vimos que a propriedade intelectual carrega em si uma série de características que a distinguem das demais propriedades. Ocorre que, na verdade, a propriedade intelectual é um conceito amplo que serve para abarcar uma série de bens intangíveis que, por sua vez, também contam com peculiaridades e se distinguem uns dos outros de maneira significativa.

Por isso, façamos aqui uma analogia. A partir da ideia das múltiplas feições da propriedade apresentada anteriormente, cremos ser importante analisar cada um dos institutos da propriedade intelectual tendo em vista tal perspectiva. Afinal, assim como não é mais possível compreendermos a propriedade como uma categoria única, cujas regras se espraiam indistintamente por todas as várias propriedades, não é porque um determinado grupo de bens se qualifica como pertencentes à categoria da propriedade intelectual que partilham eles a mesma disciplina jurídica.

Ainda que parte da doutrina insista – a nosso ver de maneira equivocada – em afirmar que “não há grandes divergências quanto à aceitação de que a proteção aos bens intelectuais tem natureza jurídica de propriedade,ainda que tal propriedade tenha limitações especiais”, acreditamos que uma análise mais precisa faz-se necessária.

Para tanto, é indispensável indicarmos os bens protegidos por propriedade intelectual, tomando-se por referência inicial a distinção anteriormente apontada entre direitos autorais e propriedade industrial. Comecemos, entretanto, por uma semelhança: ambas as categorias gozam de proteção constitucional.

Os direitos autorais são mencionados nos termos do art. 5º da Constituição Federal de 1988, conforme segue:

XXVII– aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:

  1. a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
  2. o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;

Já a proteção aos bens regulados pela propriedade industrial encontra-se prevista nos seguintes termos da CF/88, em seu art. 5º:

XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;

Apesar de a CF/88 fazer referência apenas aos direitos autorais e a determinadas categorias de propriedade industrial (inventos industriais e marcas), entende-se que a abrangência da propriedade intelectual é mais ampla do que a referida no texto acima. Para o Acordo TRIPS, por exemplo, o termo“propriedade intelectual” abrange as seguintes categorias: (i)direito do autor e direitos conexos; (ii) marcas; (iii) indicações geográficas; (iv) desenhos industriais; (v) patentes; (vi) topografias de circuitos integrados e (vii) proteção de informação confidencial. Em razão da importância mundial deste tratado, vamos nos ater a estas categorias para analisarmos os bens protegidos pela propriedade intelectual. Apesar dos vários institutos jurídicos que são conjuntamente classificados como propriedade intelectual, seria possível encontrar elementos comuns a todos? A partir da obra de Justin Hughes, Cláudio R. Barbosa aponta os seguintes critérios, que serviriam de princípios gerais para a proteção de bens intelectuais(além, é claro, de sua natureza imaterial):

Os critérios acima de fato podem se aplicar, de modo mais ou menos uniforme, aos diversos bens protegidos pela propriedade intelectual. Quanto à natureza jurídica, Cláudio R. Barbosa acaba por defender que uma característica comum a todos os direitos sujeitos à propriedade intelectual seria sua qualificação como propriedade. Afirma que “tem prevalecido a orientação doutrinária com o respaldo normativo e jurisprudencial de que a propriedade intelectual é propriedade de natureza especial. A natureza jurídica é equiparada à propriedade, mas obedece a parâmetros normativos próprios”[.

Não nos parece, contudo, que a generalização seja incontroversa. Como será devidamente esclarecido, entendemos que tais bens, por mais paradoxal que possa parecer diante da nomenclatura que os une, não estão todos sujeitos ao direito de propriedade[.

João da Gama Cerqueira, em obra clássica e minuciosa, afirma haver, de um lado, a teoria da propriedade e, de outro, as diversas teorias que pretendem substituí-la. O autor aponta as correntes que encaram os direitos de propriedade intelectual como privilégios de criação legal ou como reconhecimento de caráter subjetivo. Entre as primeiras situam-se as teorias (i) do privilégio, (ii)do monopólio (ainda sob o aspecto da primeira) e (iii) do contrato. Já entre as segundas, as teorias (i) dos direitos patrimoniais, (ii)dos direitos pessoais, (iii) mista (de natureza patrimonial-pessoal).

Robert Sherwood, partilhando a orientação majoritária da doutrina, defende que os bens intelectuais são protegidos enquanto propriedade. Chega a afirmar que“o termo ‘direitos de propriedade intelectual’ é redundante”. Afinal, o conceito de direito estaria implícito em qualquer noção de propriedade.

A doutrina diverge acerca da natureza jurídica dos bens intelectuais. Alguns autores, inclusive, lidam com ambas as possibilidades – podem os bens intelectuais ser ou não ser objeto de propriedade, já que decerta maneira a disputa parece mesmo insuperável. O professor espanhol Luis Felipe Rangel Sánchez, por exemplo, afirma que “a propriedade intelectual não é realmente uma propriedade porque seu objeto não é uma coisa externa, mas o que surge da mente e das qualidades pessoais do criador”. Por outro lado, pondera,que “se se impusesse a tendência contrária e a chamada propriedade intelectual fosse uma verdadeira propriedade, seria sempre uma propriedade especial, porque seu objeto são os bens imateriais em sentido próprio, os bens que não são tangíveis, que apenas se apreciam através do espírito”8.

Ainda assim, conforme anteriormente apontado, as classes de bens intelectuais são distintas umas das outras, e embora carreguem em si pontos de contato, não nos parece possível tratar todas de maneira idêntica sendo suas peculiaridades tão relevantes.

Dividimos este item em dois tópicos. No primeiro, cuidaremos dos bens protegidos como propriedade industrial. No tópico seguinte, trataremos dos direitos autorais.

Nosso objetivo essencial é discutir, a respeito de cada um dos bens acima apontados, se são de fato objeto de propriedade e em que medida,uma vez esgotado seu prazo de proteção, compõem o domínio público.

(continua…)


Artigo baseado no livro O DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO – UMA OBRA EM DOMÍNIO PÚBLICO, de Sergio Branco.