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Capa do livro de André Midani

Começo o post reproduzindo trecho da orelha do livro de André Midani, escrita por Zuenir Ventura:

 

Se não existisse, André Midani não poderia ser inventado. Seria inverossímil demais. Sua vida é feita de acasos improváveis. Vocês conhecem alguém que se encontrava na Normandia em 1945, durante o desembarque das tropas ailadas no famoso “Dia D”? Pois André estava lá, como muito depois estava no Rio ajudando a criar a Bossa Nova. Ou mais tarde nos Estados Unidos, como um dos mais poderosos executivos da Time Warner.

Esta pequena apresentação não dá conta de esclarecer como foi improvável e fértil a trajetória de André Midani, francês de origem síria e radicado no Brasil, um dos principais executivos da música no mundo. O episódio da Normandia, por exemplo, nos apresenta uma realidade que não é a nossa, que não fazem parte da nossa memória coletiva: ele conta com naturalidade que havia pessoas morando na Normandia ocupada pelos nazistas, havia crianças por lá e, depois da batalha, elas brincavam nos tanques a casamatas deixados pelos nazistas e pelos aliados. E depois conta a incrível trajetória de uma destas desta crianças até o Olimpo musical do Brasil, e que caminhos improváveis ela seguiu. (Para quem não estiver ligando os pontos das aulas de história, o desembarque na Normandia é aquela famosa cena do filme “O resgate do soldado Ryan”, na chegada das tropas à praia, sob fogo cerrado.)

Nada disso tem a ver com o universo musical, que é o que nos interessa, mas como nem só de música vive o músico, é riquíssima a leitura deste livro – que gerou uma série de TV no canal GNT. No geral é um livro inspirador, mas também cheio de curiosidades e acontecimentos esdrúxulos.

Faz sentido o espanto da oficial de fronteira:

– O senhor vem de onde, na Colômbia?
– De Bogotá… E de Medellín, também.
– Hum-hum… E o senhor está passando pelo México…
– Sim, senhora.
– O senhor trabalha em quê?
– Trabalho com discos e música.
– Sei. E, com um sorriso malicioso, encerrou o interrogatório:
— Olhe, meu senhor… Uma pessoa nascida na Síria, com passaporte brasileiro, que mora em Nova York, que vem de
Medellín e passa pelo México, que diz trabalhar com música e que fala espanhol com sotaque francês… não pode ser uma pessoa confiável!!!
Ela, então, carimbou meu passaporte, me olhou outra vez e disse:
— Pues bienvenido e divirtase en nuestro país e que le vaia bien.

Esse estranhamento começou já nos meus primeiros dias de vida, visto que, “ao todo”, me chamo André Calixte Haidar Midani… Não sei como nem por que apareceu o nome “André”, uma vez que não existe registro desse nome em nenhum documento meu de qualquer cartório, de país algum. E não me passou pela cabeça perguntar à minha mãe — a ela se perguntava pouco porque raramente se obtinha resposta…

SIm, André não é o nome de seus documentos, e Calixte está só em alguns. Nota-se que não se trata de uma pessoa comum, tediosa. Nem mesmo seu nome de batismo é uma história banal.

O livro conta a trajetória até André chegar no Brasil – trecho da história que mais nos interessa – e se tornar o principal homem de negócios da música do país. Muitos desconfiavam de um gringo sendo o poderoso executivo de gravadora multinacional, mas estamos falando de uma época em que grandes homens comandavam grandes gravadoras, um mundo que não existe mais. A então jovem geração do rock dos anos 80 tinha André como um guru todo-poderoso, para o bem e para o mal. No geral, foi mais admirado do que contestado pelos músicos do primeiro time da MPB.

O melhor do livro, portanto, é conhecer um pouco dos anos de ouro da indústria fonográfica por quem a viveu de dentro, no Brasil e no exterior. Às histórias improváveis somam-se casos de sucesso e fracasso no mercado do disco, quando ele existia e era enorme.

 

No Brasil, a Warner seguia muito bem até as 23h de uma noite tranquila de dezembro de 1980, quando tocou o telefone em casa e a voz conhecida do Mo Ostin, presidente do selo Warner, me deu a triste notícia:
— André, John Lennon has been fatally shot…{79}. A gente tinha acabado de lançar o que seria o último disco dele…
Era também o prenúncio simbólico da derrocada da minha companhia no Brasil, que se estenderia por três longos anos… Surgia uma crise econômica mundial de grandes proporções, que pioraria, e muito, no Brasil, por causa do fracasso de mais um plano econômico que assolava o país ciclicamente. Duas crises simultâneas com efeito cumulativo foram fatais para a nossa economia.
De repente, o mercado de discos, que vinha crescendo ao ritmo de 10% ao ano, caiu repentinamente em 30%. Na Warner, havíamos previsto um crescimento, naquele ano, de uns 20%. E ficamos 50% abaixo das nossas previsões. Todos os investimentos haviam sido efetuados dentro daqueles parâmetros. A situação da Warner, que tinha menos de cinco anos de existência no mercado brasileiro, ficou tão grave que, de um dia para o outro, estávamos tecnicamente quebrados. As soluções eram poucas: ou eu conseguia um aporte de capital da matriz, em Nova York, ou encontrava uma solução mágica localmente, ou eu fechava a companhia.
(…) Até o Gil pensou em sair da Warner — logo ele, nosso porta-estandarte!
— Gilberto, se você sair, eu paro de trabalhar com discos. Porque a sua saída seria meu segundo fracasso neste momento. E esse fracasso, eu juro que não teria força nem coragem de encarar e suportar…
O Gil ficou em silêncio durante longos minutos, olhou para mim seriamente e, com gravidade, respondeu:
— Está bem. Eu fico.
Fui e serei sempre grato a ele por esse gesto de amigo e cavalheiro, que me socorreu num momento tão desastroso.
Foi o início de três anos que deixaram marcas por um longo tempo. Eu vivia momentos de profunda tristeza e profundo desamparo.
— Não quero mais, não posso mais — confidenciava ao meu amigo, o publicitário Washington Olivetto, num sábado à tarde, num boteco da rua Oscar Freire.
Outras vezes, eu pensava: “Não posso nem me demitir porque a gente não sai quando está mal. Só se sai quando se está com sucesso, e de cabeça erguida!” (…)
Querendo retomar a dianteira sobre nossos concorrentes, ainda no início da década de 1980, chamei o Liminha, que eu acabara de promover a diretor artístico da Warner, e o Pena Schmidt, contratado para a mesma posição em São Paulo, para traçar um plano de ação. Decidimos fazer o que melhor sabíamos: ir para a rua e descobrir novos talentos aos quais ninguém prestava atenção, e, assim, surpreender e reconquistar um lugar decente no mercado. Eles saíram à luta, visitando os botecos da vida, os bares e os galpões de São Paulo e do Rio. Liminha, por ser um extraordinário músico, e Pena, por ser um “rato da noite”, encontraram rapidamente o que estava diante dos olhos de todos, mas ninguém via: roqueiros de nomes estranhos, como Kid Abelha & os Abóboras Selvagens, Ultraje a Rigor,Titãs do Iê-Iê, Ira!, Camisa de Vênus, Kid Vinil, e, posteriormente, o Barão Vermelho. Kid Abelha e Lulu Santos foram os primeiros sucessos que deram à companhia uma nova alma e a confiança de haver descoberto artistas para uma nova geração de público jovem.

Este livro foi lançado anteriormente a esta edição que temos em mãos, com o título de “Música, ídolos e poder”, mas a editora logo sofreu com um embate judicial provocado pela família de Enrique Lebendiger, ex dono da RGE, descrito no livro como  “figura exótica que não tinha capacidade nem seriedade profissional para acompanhar a carreira de um profissional do calibre de Chico Buarque”.

Este trecho foi suficiente para retirar o livro de circulação por algum tempo, apesar da promessa da retirada da citação. No relançamento, em 2015, sobrou apenas o subtítulo “Do vinil ao download”, bem menos pretensioso, aproveitando o sucesso da série de TV de mesmo nome. Neste meio tempo o livro foi distribuído gratuitamente pela internet, e você pode achar uma destas cópias por aí. Mesmo assim, recomendamos a compra de um exemplar de papel, há muitos em sites de livros usados, por exemplo.

Apesar do imbróglio citado, André Midani foi discreto e gentil com a maioria dos personagens que aparecem no livro. Certamente muita coisa ficou de fora. Não há dúvidas que este homem, do olho do furacão, poderia ter contado mais detalhes sórdidos, pontos de vista mais críticos, ou poderia ter sido mais ácido. Mas ele optou por não fazer deste modo. Histórias incríveis de um personagem improvável é o que nos apresenta este livro. Poderia ser ficção. Das boas.

DO VINIL AO DOWNLOAD

de ANDRÉ MIDANI

EDITORA NOVA FRONTEIRA

1ª edição, 2015

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