Brasil e Estados Unidos são países muito diferentes mas ainda assim é interessante compará-los sob o prisma da música popular. Ambos os países eram habitados por povos nativos antes da chegada dos colonos europeus. Também foram sociedades escravagistas até a segunda metade do século XIX. Enquanto nos Estados Unidos a escravidão se concentrava no Sul, no Brasil ela se difundia por todo o território, e durante três séculos a economia foi fundamentalmente dependente desse modo de produção.
A primeira metade do século XX foi um período de grandes transformações em ambos os países. Eles haviam abolido a escravidão, recebiam quantidades crescentes de imigrantes e passavam por processos de urbanização, industrialização e construção da nação. A crise econômica da década de 1930 afetou os dois países de modo dramático. A vida social tornou-se cada vez mais monetarizada, e houve diferentes reações a esse processo.
Tudo isso se reflete na música popular, que abre uma janela para comparar as duas sociedades. A música popular é um importante prisma através do qual olhar para sociedades. Ela reflete a vida quotidiana, eventos sociais e políticos, mudanças na moral, nos valores culturais e em representações econômicas.
O dinheiro tende a ser um tema central na música popular. Ele costuma aparecer relacionado a outros tais como o trabalho, desigualdades sociais, relações de gênero, ou amor. O lado negativo do trabalho é refletido na música popular brasileira. Durante os anos 1920, 1930 e 1940, compositores de samba costumavam exaltar a malandragem. Ela se desenvolveu enquanto um modo de vida. O governo estava tão preocupado que o brasileiro pudesse estar desenvolvendo uma ética da malandragem que durante a ditadura de 1937-1945 o Estado decidiu intervir, por meio do Departamento de Informação e Propaganda (DIP), seu órgão de censura, no sentido de proibir músicas que exaltassem a malandragem, ao mesmo tempo em que premiava aqueles que exaltavam o trabalho.
Os mesmos compositores que faziam o elogio da malandragem também pintavam o dinheiro como algo inferior, normalmente demandado por mulheres que não entendiam que os homens aos quais elas se dirigiam tinham algo muito mais precioso a oferecer: seu amor. É claro, há aqui um “complexo das uvas verdes”: sabendo que nunca ganhariam muito dinheiro não importa o quanto tentassem, esses homens menosprezavam o vil metal. Por outro lado, em várias das letras dessas canções, nota-se que o dinheiro é uma realidade da qual ninguém vivendo numa sociedade monetarizada pode escapar. Mas tudo isso é visto de forma melancólica. E o dinheiro pode ser destrutivo: ele às vezes acaba com o amor e a amizade e convida à traição. Como colocou Noel Rosa, um dos grandes compositores da música popular brasileira dos anos 1930, em Fita amarela (em coautoria com Vadico):
Não tenho herdeiros / Nem possuo um só vintém / Eu vivi devendo a todos / Mas não paguei a ninguém.
Música popular norte-americana
A primeira composição registrada com o nome de samba apareceu em 1917. Antes disso, praticamente não havia indústria musical e nenhuma noção de direitos autorais no Brasil. Nos Estados Unidos, a indústria musical e os direitos autorais começaram mais cedo.
Ao analisar a música popular norte-americana da primeira metade do século passado, deve-se lidar com diferentes gêneros, estilos e influências. Há o minstrelsy, o Tin Pan Alley (lugar próximo da rua 28 e Broadway em Nova Iorque, onde se desenvolveu a sheet music) e, é claro, o blues. Todos eles lidam com o dinheiro, mas de formas diferentes. Enquanto no minstrelsy os afro-americanos eram frequentemente descritos como não sendo capazes de entender o significado de “tempo é dinheiro” enquanto pilar central da vida norte-americana moderna, nas canções de Tin Pan Alley o dinheiro era frequentemente cantado de modo frívolo, como um modo de alcançar o luxo (como em Diamonds are a girl’s best friend, música interpretada por Marilyn Monroe no filme de 1953 de Howard Hawks, Os homens preferem as loiras). No blues, por outro lado, o dinheiro é central à sobrevivência, porém fora do alcance dos trabalhadores.
Diversas canções produzidas no final do século XIX e começo do século XX nos Estados Unidos discorrem sobre o dinheiro. If time were money I’d be a millionaire (letra de Felix F. Feist e música de Ted S. Barron, direitos autorais de 1902) é um bom exemplo:
A lazy coon a hangin’ ‘round / Um negro preguiçoso que andava por aí
Heard Parson Jenkins say / Ouviu o Pastor Jenkins dizer
“Dat time was money” / “Que tempo é dinheiro”
And it almost took his breath away / E ele quase perdeu o fôlego
He never done a stroke of work / Ele nunca trabalhou
He was too big and strong / Era grande e forte demais
He’d stretch out in the boilin’ sun / Ele se espichava debaixo do sol escaldante
And sleep de whole day long / E dormia o dia inteiro
Of course he never had a dollar / É claro, ele nunca teve um tostão
In his tattered clothes / Em suas roupas esgarçadas
And didn’t own a pair of shoes / E nunca teve um par de sapatos
To cover up his toes / Para cobrir seus dedões
De only thing he had / A única coisa que ele tinha
Was lots of time to pass away / Era muito tempo pra gastar
And when he heard / E quando ele ouviu
Dat time was money / Que tempo era dinheiro
Dis is what he did say / Ele disse o seguinte
If time was money / Se tempo fosse dinheiro
I’d be a millionaire / Eu seria milionário
I’ve got time honey / Eu tenho tempo, meu bem
An’ chunks of it to spare / E muito dele pra gastar
Oh dere aint no other coon / Não tem outro negro
Could get wealth half so soon / Que fosse capaz de enriquecer tão rápido
If time was money / Se tempo fosse dinheiro
I’d be a millionaire / Eu seria milionário
Dis nigger was too lazy / Esse crioulo era preguiçoso demais
Fo’ to raid a chicken roost / Para correr atrás de um frango
Because he’d have / Porque ele teria
To lift his arm to give / Que levantar seu braço
His hand a boost / Para mexer sua mão
He nearly starved / Ele quase morreu
To death one day / De fome um dia
Fo’ certainly because / Certamente porque
He didn’t have the energy / Ele não tinha energia
To move his lazy jaws / Para mover suas mandíbulas preguiçosas
Dis coon was never sociable / Esse negro nunca foi sociável
It tired him to talk / Falar o cansava
If twenty mules would kick him / Nem se vinte mulas lhe dessem coices
All at once he wouldn’t walk / Ao mesmo tempo, ele não andava
‘An so a baskin in the sun / Então, debaixo do sol escaldante
Dis nigger laid all day / Esse crioulo ficava deitado o dia inteiro
A grinnin’, chucklin’ to himself / Rindo para si mesmo
An’ dis am what he’d say / E isso é o que ele dizia
If time was money / Se tempo fosse dinheiro
I’d be a millionaire / Eu seria milionário
Essa canção foi composta por dois músicos brancos num momento em que parte da população norte-americana já havia sido convertida às virtudes da produtividade e da gestão adequada do tempo. Por outro lado, a escravidão havia sido abolida há pouco, e certas pessoas eram consideradas incapazes de entender essa lógica. Na música, são ex-escravos que ainda não haviam sido integrados nas novas formas do processo produtivo. O sujeito de If time was money I’d be a millionaire é visto como um coon, ou seja, alguém que hoje seria chamado de afro-americano – de modo ofensivo e depreciativo, associado com uma “pessoa rústica ou indigna”. Além de preguiçoso, ele é visto como tão ingênuo que não é capaz de perceber o significado do provérbio “tempo é dinheiro”, um pilar central da América capitalista. Como não trabalha e parece se contentar com a situação, ele tem todo o tempo de que precisa e é levado a acreditar que é um milionário. O modo como é ele descrito na música popular americana é eivado dos preconceitos que abundavam nos Estados Unidos na época em que a música foi escrita.
Há uma diferença importante entre as músicas brasileiras e norte-americanas com relação à questão da raça. Os compositores brasileiros do início do século XX eram não raro descendentes de escravos e assumiam uma posição quase política no fato de rejeitarem de forma um tanto consciente o trabalho e a ética a ele associada. Enquanto o sujeito de If time was money I’d be a millionaire é mostrado como estúpido e incapaz de compreender o que significa uma ética capitalista, mais ou menos na mesma época os compositores negros brasileiros exaltavam a ociosidade e menosprezavam o trabalho. Eles admitiam que eram preguiçosos e que tinham coisas mais nobres a fazer do que pensar em dinheiro. A preguiça era tida como uma atitude digna. Macunaíma, resultado de uma mistura racial entre brancos, negros e indígenas, nasce preguiçoso e é definido como “um herói sem nenhum caráter”. Suas primeiras palavras ao nascer foram “ai, que preguiça”. A preguiça enquanto traço herdado e inevitável da personalidade aparece claramente no samba Caixa Econômica, gravado em 1933 por Orestes Barbosa e Antônio Nássara:
Você quer comprar o seu sossego
Me vendo morrer num emprego
Pra depois então gozar
Esta vida é muito cômica
Eu não sou Caixa Econômica
Que tem juros a ganhar
E você quer comprar o quê, hem?
Você diz que eu sou moleque
Porque não vou trabalhar
Eu não sou livro de cheque
Pra você ir descontar
Se você vive tranquila
Sempre fazendo chiquê
Sempre na primeira fila
Me fazendo de guichê
E você quer comprar o quê, hem?
Meu avô morreu na luta
E meu pai, pobre coitado
Fatigou-se na labuta
Por isso eu nasci cansado
E pra falar com justiça
Eu declaro aos empregados
Ter em mim essa preguiça
Herança de antepassado
Temos aqui um exemplo em que a preguiça se torna um traço herdado e é transformada numa ética. O personagem masculino, provavelmente neto de um escravo e filho de um trabalhador, argumenta que o trabalho é inútil para as classes baixas. A preguiça é vista como um traço pelo qual ele não é responsável, manifesto no momento do seu nascimento.
Vale notar que, enquanto numa canção como When you ain’t got no money well you needn’t come round (letra de Clarence S. Brewster e música de A. B. Sloane, direitos autorais de 1898, apresentada como “uma nova cantiga de um negro apaixonado”), a mulher demandante que pronuncia a frase que dá título à música (“se você não tem dinheiro nem precisa aparecer”) tem o controle da situação, em Caixa Econômica, apesar de a personagem feminina orientar o enredo do samba ao acusar o homem narrador de ser um vagabundo, ele termina tendo a palavra final ao se defender vigorosamente. Ele o faz em dois níveis. Além de argumentar que trabalhar é inútil para as classes baixas, seu segundo nível de defesa é um contra-ataque, expresso na acusação de que a mulher é uma consumidora insaciável com um caráter predador, já que ela quer obter estabilidade fazendo-o entrar no mundo da ordem, aqui representado por um trabalho assalariado. O homem também rejeita toda associação entre ele e qualquer coisa que lembre dinheiro.
Canções de amor…
Nessas canções, o amor é normalmente visto como superior ao dinheiro. Um exemplo da natureza sublime do amor pode ser encontrado na canção norte-americana Something that money can’t buy (letra de Charles Horwitz, música de Frederick V. Bowers, direitos autorais de 1900):
Gold has its power / O ouro tem seu poder
Sages will say / Os sábios diriam
Riches in life / As riquezas da vida
Hold a wonderful sway / Têm muito apelo
But there’s a power / Mas há um poder
Hails from above / Que emana de cima
Greater and better / Maior e melhor
Power of love / O poder do amor
There strolls a noble / Há um nobre
Money and land / Dinheiro e terras
Lives in a mansion / Vive numa mansão
Costly and grand / Cara e grandiosa
Still he’s unhappy / Ainda assim, ele é infeliz
No one knows why / Ninguém sabe por quê
Love is the power / Amor é o poder
Money can’t buy / Que o dinheiro não pode comprar
Love of a mother / O amor de uma mãe
For her darling child / Por seu filho querido
Love for a son / O amor por um filho
Tho’ he’s wayward and wild / Ainda que voluntarioso e truculento
Love that brings joy / Amor que traz alegria
And a tear to the eye / E lágrimas aos olhos
This love is something / Esse amor é algo
That money can’t buy / Que o dinheiro não pode comprar
There sits a maiden weary at heart / Há uma dama com o coração apertado
Sighing for one who had / Suspirando por alguém que
Vow’d ne’er to part / Prometeu nunca partir
Two lives were happy / Duas vidas eram felizes
Till one sad day / Até que num triste dia
There came a message / Veio uma mensagem
He’d pass’d away / De que ele havia falecido
Still she is constant / Mas ela é constante
Never will wed / Nunca vai se casar
True to the one who lies buried / Fiel àquele que está enterrado
‘tis said / Dizem
Rich men to win her / Homens ricos querem ganhá-la
One and all try / Todos tentam
Her love is something money can’t buy / Seu amor é algo que o dinheiro não pode comprar
Love of a soldier / O amor de um soldado
His flag to defend / Na defesa da sua bandeira
Loving Old Glory / A querida “Old Glory”
He fights to the end / Ele luta até o fim
True to these colors and for it he’d die / Fiel às cores, disposto a morrer por elas
This love is something that money can’t buy / Esse amor é algo que o dinheiro não pode comprar
As relações de gênero formam parte da temática das canções brasileiras e norte-americanas sobre dinheiro compostas no final do século XIX e início do século XX. Embora a maioria dos compositores fosse homens, eles não raro construíam uma narradora feminina. As mulheres podem ser ou sublimes no amor que oferecem, ou malvadas porque pedem dinheiro. Nas composições da época, o dinheiro é cada vez mais associado à figura da mulher. Entramos aqui no domínio das expectativas e queixas entre homens e mulheres – temas que abundam nas composições daquele período. As canções trazem o ponto de vista tanto masculino como feminino (tal qual expresso por meio da imaginação masculina). Como as relações amorosas são feitas de expectativas, sempre confrontamos uma tensão entre o que é esperado ou demandado do sexo oposto e o que se obtém dele. Também estão sempre presentes aquilo que fazemos para atender às expectativas dos outros e a gratidão ou ingratidão geradas pela ação. A música popular daquela época reflete esse mundo de expectativas e queixas num registro às vezes humorístico, às vezes marcado por ressentimento.
Em canções norte-americanas, as mulheres também aparecem fazendo demandas constantes por dinheiro. Em Money blues, composta por D. Leader e H. Ellers e gravada por Bessie Smith em 1926, temos uma referência direta ao dinheiro:
Daddy, I need money / Querido, preciso de dinheiro
Give it to your honey / Dê algum pro seu benzinho
Daddy, I need money now / Querido, preciso de dinheiro agora
All day long I hear that song / O dia inteiro escuto essa música
Daddy, it’s your fault / É sua culpa
If I go wrong / Se eu saio da linha
I need a small piece of money now / Eu preciso de um trocado agora
I can use a small piece now / Eu preciso de um trocado agora
Várias outras músicas cantadas por Bessie Smith falam diretamente do dinheiro ou da sua falta: Hard times blues, Homeless blues, Poor man blues, Washwoman blues, Nobody knows you when you are down and out, Why don’t you do right (Get me some money, too!) (direitos autorais de 1941 por Joe McCoy, um músico de blues e compositor afro-americano do Delta nascido no Mississippi), também traz uma mulher exigindo dinheiro de seu homem. Ela se queixa da insolvência financeira do parceiro:
You had plenty money / Você tinha muito dinheiro
Nineteen twenty two / Mil novecentos e vinte e dois
You let other people / Você deixou que outras pessoas
Make a fool of you / O fizessem de tolo
Why don’t you do right / Por que não faz direito
Like some other men do? / Como outros homens?
Get out of here and / Saia já daqui e
Get me some money too / Me traga algum dinheiro também
Yo’ sittin’ down / Você fica sentado
Wond’ring / Pensando
What it’s all about / Na vida
If you ain’t / Se você não
Got no money / Tem dinheiro
They will / Eles vão
Put you out / Te enxotar
Why don’t you do right … / Por que você não faz direito…
If you had prepared twenty years ago / Se você tivesse se preparado há vinte anos
You wouldn’t be / Você não estaria
Wandering now / Perambulando por aí
From do’ to do’ / De bico em bico
Why don’t you do right … / Por que você não faz direito…
A canção trata de temas comuns dos blues depois da Grande Depressão. A mulher se queixa de que seu companheiro está quebrado porque gasta seu dinheiro com outras mulheres, as quais deixaram de ter interesse nele quando ficou pobre. Seu refrão é que ele deve “fazer o certo” como outros homens fazem, insistindo que ele deve ter uma renda para sustentá-la. Mas quando o homem é o provedor, as relações de poder entre os sexos baseadas no dinheiro afloram, o que pode ser visto em Paying the cost to be the boss, uma canção de 1968 com letra e música de B. B. King, guitarrista de blues e cantor-compositor afro-americano nascido no Mississippi:
You act like you / Você age como se
Don’t wanna listen / Não quisesse ouvir
When I’m talking to you / Quando falo com você
You think you ought to do, baby / Você acha que pode fazer, baby
Anything you want to do / Tudo o que quiser
You must be crazy, baby / Você deve estar louca, baby
You just got to be out of your mind / Você deve estar fora de si
As long as I’m paying the bills, woman / Enquanto eu estiver pagando as contas, mulher
I’m paying the cost / Eu banco o custo
To be the boss / De ser chefe
I’ll drink if I want to / Eu bebo se eu quiser
And play a little poker, too / E jogo algum pôquer também
Don’t you say nothing to me / Não me diga nada
As long as I’m taking care of you / Enquanto eu estiver tomando conta de você
As long as I’m working, baby / Enquanto eu estiver trabalhando, baby
And paying all the bills / E pagando as contas
I don’t want no mouth from you / Não quero ouvir palavra sua
About the way I’m supposed to live / Sobre como eu deveria viver
You must be crazy, woman / Você deve estar louca, mulher
You just gotta be out of your mind / Deve estar for a de si
Now that you’ve got me / Agora que você me tem
You act like / Age como se
You’re ashamed / Sentisse vergonha
You don’t act like any woman / Não age como uma mulher normal
You’re just using my name / Só está usando meu nome
I tell you I’m gonna handle all the money / Eu lhe digo que vou cuidar de todo o dinheiro
And I don’t want no back talk / E não quero que você me afronte
‘Cause if you don’t like / Porque se você não gosta
The way I’m doing / Do que eu faço
Just pick up your things and walk / Pegue suas coisas e saia
You gotta be crazy, baby / Você deve estar louca, baby
You must be out of your mind / Deve estar fora de si
As long as I’m footing the bills / Enquanto eu estiver cobrindo as contas
I’m paying to the cost / Eu banco o custo
To be the boss / De ser chefe
Se tomarmos as canções brasileiras, notamos que as mulheres tampouco estão satisfeitas com seus homens. Em É o que ele quer, uma composição de Oswaldo Santiago e Paulo Barbosa de 1938, encontramos a imagem de um sonho masculino supostamente vista pela mulher:
Boa casa e boa roupa
E comida de mulher
É o que ele quer
É o que ele quer
Uma vida de orgia
Com o dinheiro da mulher
É o que ele quer
É o que ele quer
Isso é demais
Não pode ser
Quem não trabalha
Não deve viver
Esse rapaz chega querer
Que eu mastigue
Pra ele comer
Na música popular brasileira da primeira metade do último século, as mulheres insistiam cada vez mais com os homens que eles deveriam trabalhar e ganhar dinheiro, como no samba Vai trabalhar, de 1942, de Cyro de Souza:
Isso não me convém
E não fica bem
Eu no lesco-lesco
Na beira do tanque
Pra ganhar dinheiro
E você no samba
O dia inteiro, ai
O dia inteiro, ai
O dia inteiro, ai
Você compreende
E faz que não entende
Que tudo depende de boa vontade
Pra nossa vida endireitar
Você deve cooperar
É forte e pode ajudar
Procure emprego
Deixe o samba
E vá trabalhar
Embora composta por um homem, o narrador da canção é uma mulher (que lava roupa para ganhar dinheiro). Ela se queixa do seu homem, que ao invés de trabalhar dança o samba e é sustentado pelo trabalho dela.
Viver não é brincadeira não
A música popular é um lócus-chave de comparação entre sociedades. Ela expressa mudanças ocorridas em diferentes sociedades e permite compreender como elas são interpretadas e representadas por seus membros. É interessante comparar os imaginários sociais da música popular no Brasil e nos Estados Unidos porque, apesar de serem países bastante diferentes, também têm muito em comum. As letras das músicas populares representam um importante espaço social para compreender as transformações pelas quais essas duas sociedades passaram durante o século XX, em especial a construção da nação, urbanização e industrialização. Durante esse período, as cidades foram palco de um rearranjo das relações de trabalho, de disseminação do trabalho assalariado, de redefinição dos papéis de gênero e de novas formas de organização familiar. As relações tornaram-se mais monetarizadas, e o dinheiro (ou sua falta) tornou-se uma realidade crucial da vida quotidiana. Essas mudanças são expressas de modo rico nas letras da música popular.
Há um paralelismo entre as músicas brasileiras e norte-americanas analisadas aqui. As canções da década de 1920 representam um período no qual as pessoas ainda podiam sonhar em sobreviver sem trabalhar e imaginar uma sociedade na qual a ociosidade e o amor fossem possíveis e preferíveis ao trabalho assalariado e à necessidade de dinheiro. As músicas da segunda metade do século passado, por outro lado, são muito mais “realistas”. Os narradores são pobres, em sua maioria de descendência africana, e falam da dificuldade de ganhar dinheiro por meio do trabalho assalariado. Diferente das letras dos anos 1920, nas quais a palavra dinheiro é frequentemente evitada, aqui ela é mencionada explicitamente. As canções são testemunhas do fim de uma era. O período começa com os compositores afirmando a desimportância do dinheiro adquirido por meio do trabalho assalariado e o sonho de obtê-lo de forma mágica e termina com o reconhecimento de sua importância e das enormes dificuldades para obtê-lo. O dinheiro torna-se cada vez mais parte da realidade quotidiana. Como afirma o título de uma das canções do musical da Broadway Cabaret, de 1966, “o dinheiro faz o mundo girar” (Money makes the world go round).
Este artigo é uma adaptação do trabalho original de
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