“What’s Going On” aos 50 – o clássico de Marvin Gaye na Motown é tão relevante hoje quanto era em 1971

“What’s Going On” foi um ponto chave na carreira de Marvin Gaye. Jim Britt/Michael Ochs Archives/Getty Images

De Tyina Steptoe, University of Arizona

A Motown não era muito conhecida por lançar músicas politizadas. Até que surgiu “What’s Going On.”

Lançada em 21 de maio de 1971, no auge da guerra do Vietnã, o álbum de Marvin Gaye tornou-se um monstro, gerando três singles de sucesso na trajetória que o tornou o álbum mais vendido da Motown até hoje. O disco foi um ponto de virada para a Motown e também para Marvin Gaye como artista.

Como uma pesquisadora de raça e cultura nos EUA e apresentadora do programa semanal de rádio “Soul Stories,” fico abismada com a quantidade de temas que Gaye aborda e que permanecem tão relevantes hoje quanto eram quando ele escreveu sobre eles, há 50 anos.

A evolução de Gaye

Algumas das canções do álbum falam diretamente sobre a situação do mundo no início dos anos 1970.

A faixa-título, com seu verso atemporal “war is not the answer, for only love can conquer hate” (a guerra não é a resposta, pois só o amor pode vencer o ódio), condenou o envolvimento da nação no Vietnã. Mas a canção fornece pistas da evolução da música de Gaye na direção abranger temas abertamente políticos.

“What’s Going On” contrasta com seu trabalho anterior a respeito da Guerra do Vietnã, que apresenta uma perspectiva diferente. Por exemplo, “Soldier’s Plea”, o primeiro single do segundo álbum de Gaye, “That Stubborn Kinda Fellow” de 1962, oferece uma visão decididamente romântica da guerra:

While I’m away, darling how often do you think of me?
Remember, I’m over here, fighting to keep us free
Just be my little girl and always be true
And I’ll be a faithful soldier boy to you

“Soldier’s Plea” se encaixa perfeitamente no modelo de negócios inicial da Motown. Tanto Berry Gordy – que fundou a Tamla Records em 1959 e a incorporou como Motown Record Co. um ano depois – quanto os compositores que ele trouxe evitavam deliberadamente o conteúdo político.

Cantores da Motown como Mary Wells, The Supremes e The Temptations deveriam ser, como o selo dizia, o “Som da América Jovem”, não ativistas políticos. Gordy disse à revista Time em 2020, “Eu jamais quis que a Motown fosse uma porta-voz dos direitos civis”.

Embora as letras das canções não mencionassem explicitamente os protestos em curso pelos direitos civis emergentes em todo os EUA na década de 1960, a Motown não ignorou inteiramente a política racial. A gravadora lançou o álbum-discurso “The Great March to Freedom” no mesmo dia da Marcha de Washington – 28 de agosto de 1963. O lançamento relembrava a Marcha para a Liberdade, uma enorme passeata em Detroit no início daquele verão que contou com um discurso de Martin Luther King Jr.

A Motown também criou o selo Black Forum , que lançou outros discursos de King, como “Why I Oppose the War in Vietnam”, de 1967, e a música de Stokely Carmichael “Free Huey!” que pedia a libertação do companheiro líder do Black Power Huey Newton, em 1970. A gravadora também lançou álbuns de poesia de Amiri Baraka, Elaine Brown, Langston Hughes e Margaret Danner.

No geral, porém, os primeiros lançamentos pelo selo Motown eram estritamente apolíticos.

Mas o mundo mudou em 1971. A luta pela liberdade tomou um rumo mais radical com o surgimento do movimento Black Power, o Movimento Chicano, os Young Lords e o Movimento Indígena Americano. O primeiro Dia da Terra, em 22 de abril de 1970, concentrou a atenção no movimento ambientalista emergente dos EUA. Enquanto isso, ativistas anti-guerra protestaram contra o alistamento e violência crescente, enquanto sacos para corpos retornavam do Vietnã.

A paisagem sonora musical dos EUA mudou junto com essas transformações políticas, sociais e econômicas. Arte e política se fundiram durante o festival de Woodstock de 1969. Enquanto isso, mensagens impulsionadas pelo Black Power começaram a emanar do soul e da música gospel distribuída pelo selo Stax de Memphis e uma série de outros músicos que ofereceram críticas ferozes ao imperialismo dos EUA, como Nina Simone, Curtis Mayfield e Gil Scott-Heron.

Espalhando amor por todo o país

Ao lado dessa mudança política, veio a pressão interna na Motown para dar aos artistas mais controle sobre sua própria produção. À medida que os artistas da Motown amadureciam artisticamente, alguns se sentiam sufocados pelo modelo de Gordy e exigiam mais independência artística.

O próprio Gaye produziu “What’s Going On” – um ato revolucionário na Motown. O resultado é um álbum de protesto dolorosamente belo, da primeira à última faixa.

Os versos de abertura do álbum são cantadas suavemente, mas com urgência: “Mother, mother, there’s far too many of you crying/ Brother, brother, brother, there’s far too many of you dying.” (“Mãe, mãe, há muitas de vocês chorando / Irmão, irmão, irmão, há muitos de vocês morrendo.”)

A letra trata dos efeitos da guerra nas famílias e nas vidas de jovens enviados para o exterior. A próxima música segue um daqueles jovens que vivem em uma nação que luta contra uma taxa de desemprego de 6%. “Can’t find no work, can’t find no job, my friend,” Gaye lamenta em “What’s Happening Brother.”

A faixa final do álbum transmite frustração: “Makes me wanna holler how they do my life… this ain’t living, this ain’t living”

No meio, temos de tudo, desde uma exploração da fé ao hino ambientalista “Mercy Mercy Me (The Ecology)”, concluindo com o refrão “How much more abuse from man can she [the earth] stand?” (“Quanto mais abuso do homem ela [a terra] pode suportar?”)

No entanto, “What’s Going On” transmite esperança. Gaye repete a afirmação “right on” – uma frase claramente fundamentada no vernáculo urbano negro – em todo o álbum e em uma música que leva esse nome. Ouvimos pela primeira vez esta frase na faixa-título, “What’s Going On.” Gaye afirma “Right on, brother” aos homens que respondem da mesma forma em diferentes pontos da música. O chamado e a resposta comunicam um sentimento de preocupação compartilhada, luta compartilhada e redenção compartilhada – um ethos que Gaye tirou da tradição gospel que é a base de sua musicalidade.

Esta chamada e resposta são repetidas em “Wholy Holy”, com Gaye utilizando uma técnica de multitracking para sobrepor duas versões de seus próprios vocais:

We can conquer (yes we can) hate forever (oh Lord)
Wholy (wholy holy, wholy holy)
We can rock the world’s foundation
Everybody together, together in wholy (wholy holy)
We’ll holler love, love, love across the nation

Permanece um sucesso

Gordy inicialmente relutou em abraçar o novo direcionamento de Gaye. Mas a Motown não pôde ignorar o sucesso do álbum. A faixa-título alcançou o primeiro lugar na parada de R&B da Billboard e alcançou a segunda posição na Billboard Hot 100. O álbum permaneceu nas paradas por 58 semanas.

O álbum clássico de Gaye ainda é relevante para o público em seu 50º aniversário. As mensagens ambientais de “Mercy Mercy Me (The Ecology)” são tão pertinentes hoje quanto 1971, assim como as poderosas declarações sobre raça, guerra e pobreza em outras faixas.

Como alguém que leciona sobre história da música nos Estados Unidos, percebi que a maioria dos meus alunos reconhece imediatamente as músicas de “What’s Going On” – um álbum lançado décadas antes de nascerem. Em uma nação onde as pessoas continuam a protestar contra supremacistas brancos, guerras intermináveis, destruição ambiental, brutalidade policial e pobreza, “What’s Going On” permanece tão relevante como sempre foi.The Conversation

Tyina Steptoe, Associate Professor of History, University of Arizona

Este artigo é uma republicação de The Conversation sob uma licensa Creative Commons. Leia o artigo original.

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