Adaptado da obra de Sergio Branco. Dando continuidade ao artigo anterior, a segunda distinção importante entre a propriedade intelectual e as demais propriedades é que estas tendem à perpetuidade, enquanto que aquela tende a se extinguir com o tempo. A propriedade exercida sobre um imóvel ou sobre joias – ou ainda sobre bens sem qualquer valor comercial, mas de inestimável valor afetivo – podem (e frequentemente assim acontece) ser transmitidos de uma geração a outra, indefinidamente, pelo tempo que existir o bem material. O mesmo não acontece com os bens protegidos pela propriedade intelectual.
Direitos autorais, por exemplo, extinguem-se em regra 70 anos após o falecimento do autor. Já as patentes duram por 20 anos contados da data do depósito. Desenhos industriais podem vigorar pelo prazo máximo de 25 anos; programas de computador, por no máximo 50. Até mesmo as marcas podem deixar de gozar de proteção dependendo das circunstâncias. Assim é que, de modo geral, os bens intelectuais escapam aos limites da perpetuidade da propriedade. Ainda que o bem material onde a obra intelectual se encontra fixada continue a existir décadas depois de sua concepção e ainda que seu titular aufira grandes vantagens com a exploração econômica da obra, chegado o momento final do prazo de proteção legal, a obra intelectual ingressará em domínio público.
Daí se infere uma terceira distinção entre a propriedade intelectual e as demais propriedades. Todas as coisas corpóreas pertencem (ou podem pertencer) a alguém. Todo objeto de propriedade pode pertencer a um particular ou ao Estado; pode pertencer a uma ou a mais pessoas. A coisa sem dono pode vir a pertencer a alguém. O mesmo se dá com a coisa abandonada. No entanto, decorrido o prazo de proteção conferido aos bens intelectuais, eles entram em domínio público e então não podem mais ser apropriados por quem quer que seja, nem pelo particular nem pelo Estado, ainda que a este incumba a sua defesa. A obra em domínio público não é propriedade de ninguém.
Por isso é que se pode afirmar que, quanto a todos os bens objeto de propriedade, existe uma potencialidade em sua apropriação, caso já não sejam de propriedade de alguém. Mas o mesmo não se dá com os bens intelectuais. Estes têm, em regra, o destino certo do domínio público. Pelo menos quanto aos direitos autorais (que são o objeto central destes artigos), podemos afirmar sem erro que o domínio público é a regra, o fim a que se destinam de maneira inevitável. A exclusividade que o autor (ou titular do direito) detém é uma circunstância temporária.
Uma quarta distinção reside na transmissão de direitos. Todo bem objeto de propriedade pode ser transmitido por seu titular. Ocorre que quando essa operação se dá com bens físicos (um automóvel, uma casa, um livro ou um animal), a transmissão do direito de propriedade põe fim a qualquer relação jurídica havida entre o proprietário anterior e o bem. Uma vez transferida a propriedade de determinado bem por meio de contrato de compra e venda, o vendedor fica, em regra, completamente desvinculado do objeto do contrato.
O mesmo não se pode dizer quanto à cessão de determinados bens protegidos pela propriedade intelectual. Embora a regra não valha para todos os bens intelectuais indistintamente, em alguns casos – como nos direitos autorais –, o autor da obra gozará da prerrogativa de ter sempre seu nome vinculado à obra, mesmo após o decurso do prazo de proteção. Há, portanto, um vínculo indissolúvel entre autor e obra, independentemente da transmissão de sua titularidade.
Essa distinção não é isenta de críticas. Afinal, pelo menos no aspecto patrimonial, que alegadamente se reveste da natureza dos direitos reais, a transmissão se faz de modo absoluto. A propriedade se transmite e encerram-se os laços entre autor e a obra. O vínculo remanescente decorre dos direitos morais, que não têm natureza patrimonial.
Por isso, é possível afirmar que, ao menos no que diz respeito aos direitos autorais, existe um vínculo perene entre o titular originário e o objeto da cessão, e que esse vínculo não encontra paralelo na propriedade de bens materiais.
Como é possível ver, são muitas as diferenças entre a propriedade intelectual e os demais tipos de propriedade. Daí a pergunta: até onde é possível nos afastarmos de um determinado instituto jurídico sem descaracterizá-lo? Será que diante de tantas diferenças, é de propriedade que estamos tratando quando analisamos os bens intelectuais?
Tais indagações não têm resposta fácil. Assim como não é possível submeter todos os tipos de propriedade à mesma disciplina jurídica, entendemos que não dá para tratar também a propriedade intelectual como algo composto de diversos bens sobre os quais incidem sempre e infalivelmente as mesmas regras. É bem verdade que cada um dos bens que compõem a propriedade intelectual contém suas características próprias e as regras que regulam uns não necessariamente regulam os demais.
De fato, direitos autorais, marcas e patentes, para ficarmos apenas com as categorias mais relevantes, têm características diversas, sobre eles recaem regras diversas e são tratados de modo distinto pela legislação, apesar de estarem todos abrangidos pela grande classe da propriedade intelectual. Haveria de fato uma unidade estrutural jurídica a abranger todos esses direitos?
Para compreendermos melhor a natureza jurídica da propriedade intelectual e de cada um dos bens que a compõem, bem como as consequências de tal classificação, é indispensável uma análise aprofundada de referidos institutos, o que faremos no item a seguir.
Artigo baseado no livro O DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO – UMA OBRA EM DOMÍNIO PÚBLICO, de Sergio Branco.