Após uma trajetória inicial como compositor ligado às escolas de samba, Martinho da Vila fez sua estreia na indústria fonográfica com o lançamento de seu primeiro LP Martinho da Vila, no ano de 1969.
Tradição e modernização no samba
O reconhecimento formal do samba como um gênero musical vem das primeiras décadas do século XX. Inicialmente o samba foi identificado como prática limitada a redutos onde se concentrava a população de ex-escravos no Rio de Janeiro e associado ao mundo da malandragem.
Durante o período getulista ele foi promovido à condição de símbolo da brasilidade. A expansão do mercado de música popular, impulsionada pelo desenvolvimento da indústria fonográfica e pela consolidação do rádio comercial, se constituiu na base a partir da qual iniciou-se a conversão do samba em estilo musical representativo da nacionalidade.
Não foram apenas os grupos afro-descendentes que protagonizaram esse processo, mas também ciganos, baianos, cariocas, intelectuais, políticos, folcloristas, compositores eruditos, milionários etc., cada um ao seu modo e movidos por objetivos diversos, promoveram a um só tempo sua fixação e nacionalização.
Mas a promoção do samba à condição de símbolo da identidade cultural brasileira se deu em meio a um campo de forças ideológicas diversas que podem ser resumidas em duas grandes perspectivas: a da valorização da “tradição” e a da “modernização”. Em determinados momentos, tais perspectivas oscilaram entre movimentos de confluência e oposição.
Ainda nos anos de 1930, a construção da ideia de “tradição” do samba implicou na identificação dos morros cariocas como berço desse repertório, uma espécie de lugar mítico de onde emanavam os mais autênticos elementos da nossa cultura popular.
Nesse momento, subir o morro tornou-se maneira de entrar em contato direto com essa tradição.
Ao mesmo tempo em que a autenticidade aparecia como um sinal de legitimidade do samba, ganhava força o movimento orientado por uma perspectiva mais conservadora que postulava a necessidade de “higienizá-lo” e “discipliná-lo”.
Tal empreitada mobilizava ações diversas como a “melhoria da qualidade poética” das letras, o abandono das temáticas ligadas à malandragem como a apologia à vadiagem e o refinamento musical das composições.
Ary Barroso parece ter traduzido plenamente essas metas em Aquarela do Brasil, música que se converteu no exemplo emblemático da safra de composições identificada como “samba-exaltação”.
Se Aquarela do Brasil representou, nos anos de 1940, uma maneira de conciliar tradição e modernização, na década seguinte a polarização entre essas duas perspectivas se acentuou.
O debate entre os que valorizavam sofisticação musical e os adeptos da preservação da pureza das nossas tradições culturais aparece nas páginas da Revista da Música Brasileira que circulou durante os anos de 1954 e 1955. Essa revista foi porta-voz de um amplo debate sobre o jazz, que era visto por alguns como fonte de influências que descaracterizavam a música brasileira, mas por outros, como um símbolo de modernização.
Em 1955, dois lançamentos fonográficos traduziram esse confronto. O primeiro foi a composição Rapaz de bem de Johnny ALF (1955, 78 rpm), lançada pela gravadora Copacabana. Trata-se de um samba que contém elementos característicos do jazz norte-americano, que aparecem em determinados aspectos da composição como a progressão harmônica e a organização da seção rítmica.
A letra faz referência à boa vida dos jovens da zona sul do Rio de Janeiro, região praiana da cidade habitada pela classe média carioca. Essa música, sintonizada com a perspectiva da modernização do samba, foi considerada como uma das precursoras da bossa nova.
A segunda foi a composição de Zé Kéti, intitulada A voz do morro, interpretada por Jorge Goulart e lançada pela Continental (GOULART, 1955, 78 rpm). Trata-se de um samba tradicional cuja letra enfatiza os espaços míticos como o morro, o terreiro e a cidade do Rio de Janeiro:
Eu sou o samba
A voz do morro sou eu mesmo, sim senhor
Quero mostrar ao mundo que tenho valor
Eu sou o rei do terreiro
Eu sou o samba
Sou natural daqui do Rio de Janeiro.
Ao longo da década de 1960 o embate entre a tradição e a modernização ganhou novos contornos. Orientados pelo ideário nacional-popular redefinido por organizações e intelectuais de esquerda, artistas da música popular buscaram conhecer melhor a música do povo com o objetivo de se integrar a ele – como ato de cunho político e cultural.
Nesse momento, os morros e as escolas de samba fora reconhecidas como os reais representantes do samba, ao mesmo tempo em que houve a politização da canção popular.
Assim, a tradição aparecia intimamente vinculada ao engajamento político. Sambas como Zelão de Sérgio Ricardo, interpretado pelo autor em LP de 1960, e Influência do jazz, de Carlos Lyra, lançado pela Philips em 1963, são bons exemplos dessa nova tendência.
O primeiro empregava um estilo vocal semelhante ao de Dorival Caymmi, mas com arranjo bossanovista, e se referia ao sofrimento da população pobre dos morros cariocas: “Todo morro entendeu quando Zelão chorou / ninguém riu, ninguém brincou e era carnaval”.
O segundo é um samba-jazz cuja letra aborda o problema da descaracterização do samba em decorrência da incorporação de traços estilísticos do jazz. Para se livrar das influências estrangeiras e renascer em toda sua autenticidade, o compositor propõe ao “pobre samba”: “Volta lá pro morro / E pede socorro / Onde nasceu”.
No entanto, essas composições mostram que alguns dos artistas mais comprometidos com o projeto da canção engajada e nacionalista, ao mesmo tempo em que buscavam assimilar modos de expressão característicos da cultura popular, não deixavam de lado elementos musicais considerados inovadores.
Eles buscavam conciliar o vínculo com a tradição e com modernidade estética.
Essa tendência se consolidou principalmente o regime militar, quando a música popular politizada passou a ocupar maiores espaços nos meios de comunicação de massa, especialmente na televisão, como no programa O Fino da Bossa da TV Record e os Festivais de Música Popular Brasileira e da Canção, promovidos pelas emissoras TV Excelsior, TV Record e TV Globo.
Nesse cenário nasceu a MMPB, Moderna Música Popular Brasileira, posteriormente simplificada para MPB. Buscando articular “tradição” e “modernização”.
Esse segmento se consolidou na segunda metade da década de 1960, abrigando um leque de tendências da canção nacionalista como o samba autêntico, as composições de cunho folclórico e as canções parodísticas da Tropicália.
Durante os anos 1970, a tensão entre o tradicional e o moderno parece ganhar novos sentidos. A repressão política, acompanhada pelo recrudescimento da prática da censura, que se impôs à sociedade após a decretação do AI-5 em 1968, o desenvolvimento indústria cultural, impulsionando a consolidação do mercado de bens simbólicos no país, e o crescimento econômico acelerado, resultante da política de modernização conservadora, produziram fortes impactos sobre a arte e a cultura. O presidente General Médici tentou fomentar um clima de euforia, especialmente entre setores de classe média que se beneficiaram da expansão econômica, denominado milagre brasileiro, com discursos pautados por um nacionalismo ufanista. A conquista do tri-campeonato de futebol pela seleção brasileira em 1970, por exemplo, foi claramente instrumentalizada pelo governo.
Ao mesmo tempo, a indústria cultural incorporou aspectos da brasilidade nacional-popular que se traduziram especialmente nos conteúdos de programas televisivos nos anos 70. De certo modo, esse ideário aos poucos foi perdendo o sentido utópico e se integrando à ordem autoritária.
No âmbito da música popular, se a censura muitas vezes cerceou a produção de muitos compositores, em outros momentos exigiu desses artistas habilidades para adotar, como diz Tatit, “manobras criativas” visando enganar os censores e fazer com que seus recados chegassem até os ouvintes.
Nesse cenário, os marcos que orientavam a tomada de posição no campo da produção musical começaram a se confundir. A intervenção tropicalista produziu abalos profundos nas polarizações tradicional/moderno, nacional/internacional, bom gosto/mau gosto, as quais se manifestavam, por exemplo, nos confrontos entre música engajada e música alienada. Mais do que isso, a vanguarda tropicalista pôs em xeque os critérios político-ideológicos de exclusão de parte significativa da produção musical da época, possibilitando que a canção brasileira passasse a incorporar novos sabores.
De certo modo, o rompimento dessas comportas representou um primeiro sinal do enfraquecimento da legitimidade da ideia de identidade nacional. Aos poucos, verificou-se em determinadas frentes a desarticulação entre popular e nacional.
A configuração brasileira da contracultura, as atenções voltadas para questões ligadas à sexualidade, às drogas, à marginalidade do artista, à negritude, juntamente à tendência da idilização do passado comunitário, resultaram na valorização de um popular que, ao invés de se identificar com a nação, expressava a busca por outras identidades de recortes regionais ou locais.
Tais representações se refletiram de alguma forma em vários campos artísticos dos anos 70, em especial na música popular. Foi nesse ambiente que Martinho da Vila iniciou sua carreira como compositor e intérprete profissional.
Martinho da Vila, partido-alto e a MPB
Martinho José Ferreira, o Martinho da Vila, nasceu no ano de 1938 em Duas Barras, Estado do Rio de Janeiro. Ainda menino, sua família se mudou para a capital, passando a residir na Serra dos Pretos Forros, morro situado no Bairro de Lins de Vasconcelos.
Após a morte do pai, a família se dispersou e Martinho foi viver na casa de duas professoras onde se dedicou a atividades domésticas e teve a oportunidade de estudar. Ele mesmo dizia que tivera dois tipos de formação: no morro, convivendo com crianças da sua classe, jogando peladas e vivenciando práticas e rituais da religiosidade afro-brasileira, e na casa da cidade, onde além de estudar, recebeu formação católica.
Preocupado com a sobrevivência, ao concluir o curso primário, procurou pelo SENAI onde acabou se especializando em química industrial e farmácia. Mais tarde ingressou no Exército e chegou ao posto de sargento.
Martinho começou na música através das escolas de samba. Na época em que morou na Serra dos Pretos Forros, participou da Acadêmicos da Boca do Mato, primeiramente tocando frigideira e tarol, depois como compositor.
Mais tarde, transferiu-se para a Unidos de Vila Isabel, onde se tornou Martinho “da Vila“. Em 1967, compôs o enredo Carnaval de ilusões, obtendo boa repercussão no desfile. Isso lhe motivou a inscrever a canção Menina moça no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, composição que ficou entre as 30 selecionadas para as etapas finais.
No ano seguinte, concorreu no IV Festival da mesma emissora com Casa de bamba (Na minha casa/ Todo mundo é bamba/ Todo mundo bebe/ Todo mundo samba…), composição que lhe abriu espaços no mundo do disco. Essa canção foi incluída no LP Philips IV Festival da Música Popular Brasileira – TV Record (Vol.1), de 1968, e no ano seguinte foi gravada por Jair Rodrigues no LP Jair de Todos os Sambas (Vol. 1), lançado pela mesma gravadora, onde ainda consta outra canção de sua autoria, intitulada Pra que dinheiro.
Em 1969, Martinho foi convidado pela RCA Victor para gravar seu primeiro LP contendo 12 canções de sua autoria. A partir desse ano sua carreira deslanchou e Martinho da Vila se projetou como um cancionista de grande popularidade, lançando um LP por ano, todos pela RCA Victor, com considerável sucesso no mercado musical.
Apenas para se ter uma amostra, de acordo com o IBOPE do Rio de Janeiro, durante os anos de 1974 e 1976, o nome de Martinho apareceu entre os mais vendidos em todos os meses, alcançando ainda, nesse mesmo período, a primeira colocação por quatorze vezes.
Olhando para o conjunto da discografia de Martinho nota-se a presença de elementos visuais, performáticos, discursivos e musicais que revelam a preocupação de se criar uma aura de tradição e autenticidade sobre essa produção. Tendo em vista a própria biografia do compositor, a indústria fonográfica e os críticos construíram a imagem de um sambista genuíno, que fala a partir de dentro da cultura popular. Vale destacar que Martinho não foi passivo nessa empreitada; de certo modo, soube se posicionar como protagonista de todo o processo.
Uma característica marcante do estilo de Martinho, enfatizada por ele e por alguns de seus críticos, é o emprego de aspectos do partido-alto.
Segundo o professor, baterista e percussionista Oscar Bolão, o partido-alto apresenta um padrão rítmico característico, geralmente executado pelo pandeiro, que o diferencia do samba urbano. Enquanto o acompanhamento do pandeiro no samba se caracteriza apenas pela subdivisão da pulsação, no partido-alto esse instrumento costuma executar uma figuração rítmica peculiar.
Em boa parte dos fonogramas de Martinho, ouve-se uma levada rítmica bastante próxima a esta apresentada por Bolão e considerada típica do partido-alto.
Por sua vez, o próprio Martinho entende que é esse tipo de acompanhamento que caracteriza a “cadência” do partido-alto. Sobre essa base rítmica, versos curtos são entoados a partir de melodias e harmonias simples, geralmente contendo sequências de três ou quatro acordes que se repetem ao longo de toda a canção e com melodias consistindo basicamente em arpejos desses mesmos acordes, lembrando cantigas folclóricas.
O canto falado de Martinho, com ênfase nos cortes nas consoantes, reforça a pulsação rítmica, bem como o caráter despojado e bem humorado do partido-alto.
Ao longo da trajetória de Martinho nota-se ainda a preocupação do compositor e dos produtores em (re)criar o clima de simplicidade e a espontaneidade das rodas de samba.
Ao descrever o processo de gravação de seu primeiro LP, por exemplo, Martinho destaca seu caráter espontâneo, veiculando a ideia de que eles teriam feito uma roda de samba dentro do estúdio e que todas as intervenções teriam acontecido posteriormente.
De fato, ao se escutar o primeiro disco de Martinho da Vila, não se percebe nele a existência de grandes introduções instrumentais ou de arranjos complexos. Ao contrário, existe uma notável simplicidade musical. Das doze faixas que compõem o LP, em duas delas (Quem é do mar não enjoa e Pra que dinheiro) não há introduções instrumentais, mas é o próprio Martinho que entra cantando sozinho, sem acompanhamento; somente após a entrada do vocal é que os instrumentos da seção rítmica tocam.
Em outros quatro fonogramas (Quatro séculos de modas e costumes, Casa de bamba, Brasil mulato e Parei na sua / Nhêm, nhêm, nhêm), somente o acorde de tônica é tocado pelos instrumentos harmônicos, juntamente com a percussão, fornecendo ao cantor a tonalidade e o andamento da canção.
Os três fonogramas com introduções mais extensas e com maior grau de elaboração (O pequeno burguês, Tom maior e Grande amor) não vão além da execução de trechos das melodias pelo trombone com o acompanhamento da seção rítmica.
Por sua vez, no segundo LP do sambista, Meu laiaraiá (1970), percebe-se um cuidado maior na elaboração dos arranjos, com a criação de introduções mais extensas e a incorporação de outros instrumentos como cordas, madeiras, contrabaixo, bateria e piano.
Contudo, ao mesmo tempo, verifica-se uma preocupação em não deturpar a “pureza” de Martinho da Vila. Isso se encontra expresso de modo bastante claro em um pequeno texto na contracapa do LP, escrito pelo produtor Romeo Nunes:
A despeito de todo o vínculo que Martinho buscava estabelecer com a “tradição”, cabe lembrar que até então o samba se encontrava circunscrito aos limites da MPB, o que significa dizer que os mesmos ideais de modernização que norteavam a produção deste segmento também deveriam balizar a produção dos sambistas.
Isso fez com que parte do repertório de Martinho da Vila enfrentasse resistência de alguns de seus pares, uma vez que o cancionista retomava um tipo de samba mais primitivo, que não tinha vínculos com o processo de modernização e refinamento que essa produção havia experimentado ao longo dos anos.
Nesse sentido, as declarações de Pixinguinha sobre Martinho são emblemáticas, pois, para o maestro, o samba de Martinho era “a coisa mais medíocre que existe”. Isso porque, por mais que Pixinguinha também tivesse apresentado vínculos com o partido-alto mais tradicional, o compositor foi formando seu habitus em meio ao processo de modernização do samba.
Isso se percebe ainda pelo fato de que no mesmo festival em que Jamelão defendeu o primitivo partido-alto Menina moça de Martinho, Elza Soares apresentava o moderno samba Isso não se faz, composto por Pixinguinha e Hermínio Bello de Carvalho, com progressões harmônicas mais ousadas e melodias menos diatônicas.
Nota-se, assim, que a música de Martinho era produzida em meio a uma tensão entre, de um lado, a busca pela “tradição” e “autenticidade” e, de outro, o refinamento do samba no contexto da MPB.
A seguir, procuraremos apontar de que modo esses ideais já apareceram no primeiro fonograma de seu LP de estreia, ou seja, na faixa que simbolicamente o introduziu no mercado de discos. Nela se encontram reunidos três sambas de Martinho, Boa noite, Carnaval de ilusões e Caramba, todos precedidos por um comentário do próprio autor.
A descrição e a análise desses sambas revelam tanto as ações estratégicas implementadas por Martinho para se integrar ao mercado musical como os novos sentidos que o samba irá adquirir ao longo da década de 1970.
Boa noite: o pregão de um sambista “autêntico”
A primeira canção desse fonograma, Boa noite, é um samba de quadra composto por Martinho da Vila para saudar os integrantes da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel. Contudo, antes de interpretá-lo, Martinho inicia um diálogo com seu ouvinte, num tom coloquial e com uma entonação alegre, bem-humorada:
TODO MUNDO PENSA QUE EU SOU BAIANO
MAS EU NASCI NO CARNAVAL DE 38, EM DUAS BARRAS, ESTADO DO RIO
FUI CRIADO NA SERRA DOS PRETOS FORROS,
UM MORRO […] QUE A ELIANA DE LIMA CANTOU NUM LINDO SAMBA DO JOÃO LAURINDO,
NÃO É, ROMEU?
A SERRA FICA LÁ NA BOCA DO MATO, MEU PRIMEIRO REDUTO DE SAMBA
NUM BAIRRO QUE FICOU FAMOSO POR CAUSA DO VELHO CASARÃO DA TIA ZULMIRA
MUITO FALADO PELO PONTE PRETA
PRA SER O MARTINHO DA VILA, EU TIVE QUE FAZER UM SAMBA
Um início como esse confere certo caráter de espontaneidade ao fonograma. De certo modo, ele simula o ambiente informal de uma roda de samba no qual Martinho se apresenta ao público, numa espécie de pregão no qual o sambista fala das suas origens e da sua trajetória.
O conteúdo do texto revela a tentativa de atribuir a marca de sambista “autêntico”, não se limitando a contar que nascera no ano de 1938, mas sim no carnaval de 1938. E, ao que parece, essa não é uma menção gratuita: ao destacar o fato de que havia nascido no carnaval, é como se Martinho insinuasse que nascera predestinado a ser sambista.
Tal relação se encontra implicitamente desenvolvida em sua composição Linha do Ão, gravada no LP Meu laiaraiá, de 1970, quando Martinho sugere que sua ligação com a música popular teria um caráter hereditário, uma vez que seu pai era um bom improvisador ao som do calango: “O meu pai era colono / E meeiro muito bom / Calangueava a noite inteira / Não perdia verso, não”.
Carnaval de ilusões: renovação do samba-enredo através do partido-alto
Após cantar Boa noite, Martinho da Vila aparece novamente conversando com seus ouvintes. Em um comentário muito rápido, o sambista anuncia o próximo samba a ser interpretado: “Em 67, a Vila chegou na cidade com um enredo genial! Gabriel e Dario bolaram um carnaval de ilusões, sonhado por uma criança”.
Imediatamente começa a cantar o refrão de Carnaval de ilusões, samba-enredo composto para o desfile da Vila Isabel em 1967. Sua letra, escrita por Gemeu, fazia referências ao universo infantil, criando um clima de sonho e de imaginação. A canção se inicia citando a cantiga de roda Ciranda, cirandinha:
Enquanto o coro feminino repete esse refrão, Martinho declama o texto original de Gemeu, onde se percebem várias figuras do mundo infantil – os folguedos infantis, a bola, a bonequinha e o carrossel – embalados por um clima de sonho e imaginação (“Fantasia, deusa dos sonhos esteja presente”, “seres do teu reino encantado”).
FANTASIA, DEUSA DOS SONHOS ESTEJA PRESENTE
NOS DEVANEIOS DE UM INOCENTE
Ó SOBERANA DAS FASCINAÇÕES
PÕE OS SERES DO TEU REINO ENCANTADO
DESFILANDO PARA O POVO DESLUMBRADO
NUM CARNAVAL DE ILUSÕES
NA DOCE PAUSA DOS FOLGUEDOS INFANTIS
REPOUSAM A BOLA E A BONEQUINHA QUERIDA
NO TURBILHÃO DO CARROSSEL DA ALEGRE VIDA
MORFEU EMBALA A CRIANÇA TÃO FELIZ
COMO NUM SONHO ENCANTADOR
VIAJA AO MUNDO DA FABULAÇÃO
Tárik de Souza observa que Martinho da Vila não foi renovador somente no samba-enredo, mas que introduziu inovações no próprio partido-alto:
De volta ao fonograma analisado, verificamos que ele apresenta certa unidade entre suas duas partes, uma vez que, antes de apresentar o lado renovador de Martinho presente em Carnaval de ilusões, foi enfatizado o caráter “autêntico” de sua produção musical, mostrando sua ligação com o carnaval e as escolas de samba. Percebe-se, assim, que, para ser visto como alguém capaz de renovar, foi preciso que Martinho se integrasse ao circuito “tradição” para se legitimar. Nesse sentido, ganha destaque o conjunto de ações que acompanhou a trajetória do sambista ao longo da década de 1970 no sentido de aproximá-lo cada vez mais do pólo da “autenticidade” do samba.
Caramba: uma nova e incompreendida “modernização” para o samba
Após destacar o seu pertencimento à “tradição” do samba com Boa noite e apresentar seu caráter renovador com Carnaval de ilusões, Martinho faz seu terceiro e último comentário no fonograma antes de iniciar a também última canção.
Tal comentário ainda se remetia ao samba-enredo Carnaval de ilusões, aludindo à recepção que o mesmo obteve no desfile em que foi apresentado:
Botar música nessa poesia do Gemeu não foi mole, não
E os críticos meteram o pau no samba-enredo
E a Vila perdeu o carnaval
O meu amigo Chico Buarque de Hollanda dormiu
O resto da comissão não entendeu nada
No dia do resultado, eu fiz o meu primeiro samba de protesto
Se o fato de ter anteriormente declamado trechos de Carnaval de ilusões dava destaque à poesia de Gemeu, agora, com o início desse comentário, Martinho chama a atenção de seu ouvinte para sua própria habilidade enquanto compositor ao destacar a dificuldade de transformar aquele texto em um samba-enredo.
Por isso, o sambista reclama do pouco reconhecimento que recebeu por parte da comissão julgadora – da qual também participava Chico Buarque – ao realizar essa empreitada. Esse aspecto se encontra desenvolvido no texto de sua canção Caramba, que se segue ao comentário já apresentado.
Nas duas primeiras frases desse samba (“Fala, fala, falador / Não lhe dou bola porque eu sou bamba”), Martinho diz não estar incomodado diante das más avaliações que recebeu, uma vez que ele é um detentor da “tradição” do samba, visto que se afirma como um bamba.
Por sua vez, as frases seguintes (“Malha, malha, malhador / Que não aceita a evolução do samba”) completam o discurso do cancionista: como um “autêntico” sambista, ele pode dar um passo à frente no samba, algo que acaba não sendo compreendido ou aceito pelos ouvintes. Isso se encontra reforçado no juízo que Martinho faz sobre a comissão julgadora do desfile, tal como se apresenta na segunda parte de Caramba.
Nesse posicionamento de Martinho, pode-se perceber alguma ressonância daquela figura romântica do gênio: criador, inovador, à frente de seu tempo, e que acaba sendo incompreendido por seus contemporâneos.
Em uma matéria de jornal, localizamos uma citação de Martinho na qual o sambista toma para si essa figura de maneira ainda mais clara. Na verdade, o texto dessa matéria trazia críticas ao show do disco Rosa do Povo. Ainda assim, o jornalista apresentou a fala do próprio sambista, que se defendeu das críticas apoiando-se nessa figura do artista incompreendido:
Interessante perceber que, se o jornalista em questão não assumia o partido de Martinho da Vila, Tárik de Souza, por outro lado, reproduz uma visão muito próxima à do próprio sambista. Após falar sobre as inovações de Martinho no samba-enredo e no partido-alto, o crítico comenta:
Como um “autêntico” artista do universo do samba, que consegue inovar em virtude de seu conhecimento e domínio da “tradição”, mas que não é compreendido por seus pares, Martinho finaliza essa canção com um pequeno refrão que retoma a crítica, presente já no comentário que a antecede, a um “monstro sagrado” da MPB, Chico Buarque.
Os versos “Nem o Chico entendeu / o enredo do meu samba” trazem uma mensagem bastante forte: nem mesmo um cancionista tão reconhecido como Chico Buarque teria sido capaz de perceber as inovações que Martinho estava fazendo. Nesse sentido, Martinho estaria se colocando à frente de Chico, visto que ele representaria a renovação desse repertório, enquanto que este último estaria ainda preso a algum cânone.
Mais do que isso, cabe perceber o novo significado que Martinho atribui ao protesto. É sabido que, para a MPB, a expressão “canção de protesto” era empregada para rotular um repertório engajado, que denunciava injustiças sociais e políticas, convidando para a revolução.
Por sua vez, Martinho da Vila, ao caracterizar sua canção “Caramba” como um “samba de protesto”, o faz com um novo sentido, uma vez que ele não está reclamando sobre os problemas do “povo”, mas está, de certo modo, contestando a legitimidade e a avaliação do júri, inclusive de Chico Buarque.
De modo mais amplo, pode-se dizer que o “inimigo” de Martinho nessa canção não é o latifúndio, o imperialismo ou o governo militar, tal qual acontecia na canção de protesto, mas é a própria MPB.
Este texto é derivado do trabalho original de Adelcio Camilo Machado.
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