Samba: transformações no século XX

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[su_label type=”black”]De Carlos Sandroni. [/su_label]

O samba vem sendo reconhecido, nas últimas décadas, como a expressão musical mais tipicamente brasileira. Mas a palavra “samba” designa, no Brasil, muitas coisas diferentes. Sua acepção mais comum refere-se ao gênero musical desenvolvido no Rio de Janeiro ao longo do século XX.

O samba carioca tem inúmeras variantes, mas uma diferença especialmente importante tem sido sublinhada pelos historiadores do gênero entre o samba que se fez nos anos 1910 e 1920 e o que foi feito dos anos 1930 em diante. No início do século XX, quem falava em “samba” no Rio eram sobretudo as pessoas ligadas à comunidade de negros e mestiços emigrados da Bahia, que se instalara nos bairros próximos ao cais do porto, a Saúde, a Praça Onze, a Cidade Nova. Essas pessoas cultivavam muitas tradições de sua terra natal: era uma gente festeira, que gostava de cantar, comer, beber e dançar.

Chamavam suas festas de “sambas”. E usavam a mesma palavra para designar uma modalidade musical-coreográfica de sua especial predileção, que consistia no seguinte. Formava-se uma roda, para o centro da qual ia alguém que começava a dançar e dançando escolhia um parceiro do sexo oposto. (A maneira pela qual esta escolha era comunicada ao parceiro é importante: trata-se da “umbigada”, ou choque de umbigos, gesto coreográfico que, acredita-se, recebia em uma das línguas do tronco banto o nome de “semba”, suposta origem de “samba”…). Os dois dançavam no centro da roda enquanto todos cantavam curtos refrões, alternados com partes solistas também curtas e muitas vezes improvisadas, e acompanhados por palmas e instrumentos como o pandeiro, o prato-e-faca, o chocalho. Em seguida, a pessoa que havia começado deixava o centro da roda e seu parceiro escolhia segundo o mesmo procedimento um novo par, e assim sucessivamente até que todos tivessem dançado no centro.

Entre os frequentadores destas festas baiano-cariocas estavam músicos em vias de profissionalização, como os depois famosos Pixinguinha, Sinhô e Donga. Eles se inspiraram, para suas composições, em muito do que ouviam por lá. Donga, filho de uma baiana festeira, não foi o primeiro a usar o nome “samba” como denominação de gênero para uma destas composições; foi o primeiro a obter enorme sucesso popular ao fazê-lo, com o famoso “Pelo telefone”, de 1917. Mas Sinhô é que iria se notabilizar, durante os anos 1920, como o “Rei do Samba”, em composições como “Jura”,“Gosto que me enrosco” e “A Favela vai abaixo”.

Esta bem sucedida atividade de compositores profissionais iria modificar sensivelmente as conotações da palavra samba no Rio de Janeiro, popularizando-a enormemente, alargando cada vez mais a faixa da população capaz de identificar-se com ela.

Surgimento das Escola de Samba

No final dos anos 1920 são criadas as primeiras “escolas de samba”. A origem da denominação é incerta. O que parece certo é que está ligada a um bloco carnavalesco do bairro do Estácio de Sá, de nome “Deixa falar”. Este bloco teria sido o primeiro a desfilar no carnaval ao som de uma orquestra de percussões formada por surdos (tambores graves), tamborins (tambores agudos) e cuícas (tambores de fricção), aos quais se juntavam os já mencionados pandeiros e chocalhos. Este conjunto instrumental foi chamado de “bateria” e prestava-se ao acompanhamento de um tipo de samba que já era bem diferente dos de Donga, Sinhô e Pixinguinha.

O samba feito à moda do Estácio de Sá – cujos principais criadores foram Ismael Silva, Nílton Bastos, Bide e Marçal – firmou-se rapidamente como o samba carioca por excelência. Foi seguindo suas pegadas que gente como Cartola e Paulo da Portela criou as escolas de samba que viriam a tornar-se as mais tradicionais do carnaval da cidade, como a Mangueira, a Portela e a Salgueiro. Essa criação se deu no final dos anos 1920 e início dos 1930, concomitantemente aliás à criação do respectivo concurso carnavalesco.

Por que o samba do Estácio foi tão influente? É difícil responder de forma cabal a essa pergunta, mas um fator parece ter sido importante. Os compositores do Estácio rapidamente atraíram a atenção de uma figura de enorme sucesso no mundo da música profissional: o cantor Francisco Alves. No final dos anos 1920, época em que começou a gravar sambas de Bide e Ismael Silva, Chico Viola (como também era conhecido) já era a estrela mais brilhante no firmamento do rádio e do disco no país. Associando-se à turma do Estácio, catapultou-a para um patamar de prestígio que só mais tarde seria alcançado pelo pessoal da Mangueira e dos outros redutos de samba. Não é de estranhar que estes tenham visto naquela um modelo a ser imitado.

Os testemunhos sobre os desfiles de escolas de samba nos anos 1930 indicam que eles não tinham muito em comum com o que se vê hoje no Sambódromo. Cada escola cantava três sambas, e não apenas um como a partir de 1940. Estes não eram “sambas-enredo” pois o desfile não representava um enredo, isto é, não contava uma história nem desenvolvia um tema geral. Cada samba consistia de um refrão cantado em coro, depois do qual um solista improvisava versos. Evidentemente não havia amplificação, e os solistas tinham que ter voz potente o bastante para ser ouvida em meio à bateria. (Esta tinha muito menos integrantes que as de hoje, mas mesmo assim precisava tocar baixinho nas partes dos solistas.)

As transformações do samba na primeira metade do século XX se deram em múltiplos planos: nos desfiles de carnaval, mas também nos estúdios de gravação. Estes diferentes planos eram controlados por forças sociais distintas: simplificando um pouco, pode-se dizer que, no desfile, quem mandava eram pessoas como Cartola ou Paulo da Portela, pertencentes a camadas desfavorecidas da população; enquanto nos estúdios, mandavam os diretores artísticos das gravadoras, ou em última instância os próprios donos destas. O extraordinário relevo da música popular brasileira produzida naquele período (e também posteriormente) está ligado sem dúvida a que domínios sociais tão distintos tenham podido se entrelaçar, como co-protagonistas de uma história até certo ponto comum a ambos.

No início dos anos 1930, sob o impacto das inovações musicais do Estácio, mas também das inovações tecnológicas – como a substituição do sistema dito “mecânico” pelo dito “elétrico” de gravação –, se redefinem as relações entre o samba de rua e o estúdio. Um dos aspectos mais importantes da nova sonoridade que resultaria desta redefinição é a presença, nas gravações, dos chamados “ritmistas”. Essa palavra – e não a palavra “percussionistas”, de adoção muito mais recente – era usada para se referir aos músicos populares, egressos das escolas de samba, especialistas em surdos, cuícas, tamborins e pandeiros. A primeira vez que tais músicos foram admitidos em estúdio no Rio de Janeiro, ao que tudo indica, foi por ocasião da gravação do samba “Na Pavuna”, de Candoca da Anunciação e Almirante, em 1930. É somente por volta de 1932, no entanto, que a prática se torna comum.

A presença dos ritmistas provavelmente se relaciona, como sugeriu Flávio Silva, a outra mudança importante, que diz respeito ao papel dos instrumentos de sopro nos arranjos. Nas gravações da década de 1920, onde não havia percussão, o papel mais característico dos instrumentos de sopro – sobretudo os de timbre mais grave, trombone, tuba – era fazer uma espécie de pontuação rítmica nos intervalos das frases dos cantores, baseada na célula que Mário de Andrade batizou de “síncope característica”, geralmente começando por uma pausa de semicolcheia. Esta “pontuação” pode ser ouvida por exemplo no início de “Jura”, de Sinhô:“Jura… jura… jura… pelo Senhor – pom, pom pom pom, pom pom pom etc.” Mas ela foi uma verdadeira obsessão nos arranjos da época, sendo declinada em todas as variantes possíveis, nas introduções, nas pausas do canto e nos acordes finais. É tentador pensar, pois, com Silva, que um elemento tenha substituído o outro: as gravações já não precisariam do martelar rítmico de trombones e tubas, dado que agora podiam contar com surdos, pandeiros etc.

De fato, talvez a característica mais marcante das gravações de samba dos anos 1930 – ao menos por contraste com as da década anterior, e até certo ponto, também da seguinte – seja a forte presença de instrumentos de batucada. Ao contrário porém do que acontecia nos desfiles de carnaval, esta presença acontecia de maneira reduzida: um surdo, um pandeiro, um ou dois tamborins. (De cuíca, não conheço exemplo nas gravações da época: o instrumento era considerado demasiado bizarro, exótico, estranho, como atestam inúmeros testemunhos.)

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A “bizarra” cuíca, um instrumento típico do samba. Alno [CC BY-SA 3.0], via Wikimedia Commons

Esta “batucada de câmara” foi acoplada de maneira feliz a um conjunto instrumental do tipo dos que no começo do século se chamava de “choro”, isto é, base harmônica de violões e cavaquinho acrescida de um ou dois solistas, como flauta, clarineta ou bandolim. Esta nova síntese instrumental entre elementos provenientes de tradições afro-brasileiras e elementos vindos das práticas musicais de camadas médias urbanas é que foi chamada, nos estúdios de gravação e nas rádios, de “regional”, abreviação de “orquestra regional”, para diferenciá-la da orquestra tida por “universal”, à base de cordas de arco.

Os desfiles das Escolas de Samba

Os primeiros concursos de escolas de samba aconteceram numa praça vizinha ao bairro do Estácio, a Praça Onze. Esta foi nas primeiras décadas do século XX, na expressão feliz do sambista Heitor dos Prazeres, algo como uma “Pequena África”. De fato, a Praça Onze foi celebrada em prosa e verso como berço do carnaval popular do Rio de Janeiro. Isto se deve em grande parte à sua posição na geografia urbana. A Praça formava um retângulo enquadrado à Oeste pela rua Santana, ao Norte pela rua Senador Eusébio, ao Sul pela rua Visconde de Itaúna e a Leste pela rua General Caldwell. Do lado da rua Santana, estava a extremidade do canal do Mangue, à volta do qual se havia construído, por volta de 1870, a “Cidade Nova”, bairro popular, cheio de negros alforriados (a escravidão não terminou no Brasil senão em 1888) e de imigrantes vindos do interior. A música popular do Rio na virada dos séculos XIX/XX (o choro, o maxixe) foi criada e tocada em grande parte por lá.

Do lado da rua Senador Eusébio, a Praça acompanhava o trecho final da Estrada de Ferro Central do Brasil, que trazia ao centro da cidade enorme contingente de trabalhadores vindo do subúrbio. Um pouco mais longe na mesma direção, havia os morros da Saúde e da Gamboa, também muito populares e habitados por muitos estivadores por sua proximidade com o porto. Do lado da rua Visconde de Itaúna achava-se a casa de Tia Ciata. Baiana e mãe-de-santo, esta foi figura de proa na origem do samba e do culto dos orixás no Rio de Janeiro.

Finalmente, do lado da rua General Caldwell, a Praça abria-se em direção ao centro da cidade, aos bairros ricos. Pois ela não era frequentada apenas pelos pobres dos bairros que a circundavam, mas também pelos “do outro lado”, ou porque estes procurassem exotismos, ou porque mantivessem relações pessoais com os do mundo popular. Esta “abertura” em direção a outras esferas geossociais levou o antropólogo Artur Ramos a considerar a Praça Onze como uma “válvula de escape entre o mundo dos negros e o dos brancos”.

A Praça Onze era assim o lugar por excelência do carnaval dos pobres, do “pequeno carnaval”, como se dizia na época. O “grande carnaval”, por outro lado, era o dos ricos, eles também organizados em grupos carnavalescos: os “ranchos” e “Grande Sociedades”. Estes desfilavam na atual avenida Rio Branco, que era, do ponto de vista do simbolismo urbano, diametralmente oposta à Praça Onze.

A avenida em questão foi aberta em 1903-4 e batizada de “Avenida Central” pelo prefeito Pereira Passos. Considerada pelo historiador Jeffrey Needel, a justo título, como “a melhor expressão da Belle Époque carioca”, a nova avenida exprimia os desejos da elite brasileira de ver “sua” capital mais parecida com a Paris de Haussman que com uma cidade tropical e mestiça.

“A avenida foi planificada não somente com objetivos urbanísticos: ela foi concebida como uma proclamação. Quando, em 1910, seus edifícios foram terminados e seu conceito finalizado, uma magnífica paisagem urbana descortinou-se no centro do Rio. A capital federal possuía agora um boulevard de fato civilizado e um monumento ao progresso do país […] A imaginação popular era dominada pelo conjunto dos edifícios públicos, na extremidade sul da avenida: o Teatro Municipal, o Palácio Monroe, a Biblioteca Nacional e a Escola de Belas-Artes […] Estas fachadas e as forças sociais aí representadas tinham sido tão cuidadosamente planejadas quanto o próprio traçado da avenida.” (Needell, 1993)

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À esquerda, o Teatro Municipal, à direita a Escola de Belas-Artes, ao centro a Avenida Rio Branco, símbolos da Belle Époque brasileira. Foto de Marc Ferrez.

O carnaval de elite, Avenida de elite. Os edifícios mencionados formavam juntos uma espécie de súmula da cultura e da arte letradas de estilo europeu: assim o Teatro Municipal, uma cópia do Opéra Garnier, de Paris, defronte à Escola de Belas-Artes onde se ministravam aulas no mais estrito respeito ao cânon acadêmico.

Mas a história iria provar que a oposição entre a Praça Onze e a avenida Central não era tão insuperável quanto parecia…

Durante os anos 1930 e 1940, as escolas de samba ganhavam cada vez mais prestígio, à medida que o samba, como gênero musical, se transformava numa espécie de emblema sonoro do Brasil (Vianna, 1996). A Praça Onze e as ruas que a circundavam desapareceram no fim dos anos 30, na época das reformas no centro da cidade, quando foi aberta a enorme avenida Presidente Vargas (uma perpendicular ao norte da avenida Central). A partir de então, o local do desfile das escolas de samba mudou quase que a cada carnaval, mas sempre atraindo cada vez mais turistas, classe média e curiosos de todos os cantos do Rio.

Um novo tempo para o samba e o carnaval

Em 1953, um jornalista ousa pela primeira vez opinar que as escolas de samba tornavam-se – talvez – a principal atração do carnaval do Rio, mais importantes até que os ranchos e Grandes Sociedades. E no fim dos anos 1950, duas mudanças importantes acontecem. Primeiro, as escolas começam a convidar, para tratar do aspecto visual do desfile (fantasias, carros alegóricos etc) profissionais formados pela Escola de Belas-Artes, e cuja experiência foi adquirida nas cenografias de óperas do Teatro Municipal; depois, os desfiles passam a ser realizados na própria avenida onde estas instituições estavam instaladas: a avenida Central, agora rebatizada como Rio Branco.

Em trinta anos, o caminho percorrido foi enorme. Pois não se pode imaginar nada mais contrário ao que teriam desejado os construtores da ex-avenida Central: que sua joia fosse servir um dia a desfiles de negros de morros e subúrbios, tocando instrumentos de origem africana como a bizarra cuíca, e dançando à sua maneira. Caminho percorrido tanto pela escolas de samba, que se organizaram e transformaram, quanto pela própria cidade, com som dos sambas gravados nos estúdios, como os de Ari Barroso e Carmen Miranda, abandonou seu modelo exclusivamente europeu para adotar a mestiçagem cultural como valor possível.


Bibliografia:

Cabral, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996.

Needell, Jeffrey. Belle époque tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Sandroni, Carlos. Feitiço decente – transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 2001.

Silva, Flávio. Origines de la samba urbaine à Rio de Janeiro, dissertação, Paris: EHESS, 1976.

Vianna, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 1996.


Carlos Sandroni – Nascido no Rio de Janeiro em 1958, Carlos Sandroni é doutor em Musicologia pela Université de Tours, França e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ. Publicou os livros Mário contra Macunaíma: cultura e política em Mário de Andrade (São Paulo: Vértice, 1988) e Feitiço decente – transformações do samba carioca 1917-1933 (Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 2001) além de vários artigos em publicações brasileiras e européias. Desde 2000, é professor-adjunto do Departamento de Música e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE. É presidente da Associação Brasileira de Etnomusicologia (gestão 2001/2002). É também compositor, letrista e violonista, tendo canções gravadas por Clara Sandroni, Olívia Byington, e Adriana Calcanhoto, entre outros. Sua versão Guardanapos de papel (feita a partir da canção Biromes y servilletas, do uruguaio Leo Masliah) foi gravada por Milton Nascimento nos discos Nascimento e Tambores de Minas.

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Adaptado do trabalho Transformações do Samba na Século XX, de Carlos Sandroni, em Domínio Público.