Cada cultura ou religião tem seus mitos e fundamentos. Faço parte de uma confraria quase religiosa que cultua um Santo de pele negra, que tinha por hábito – e talvez missão – enternecer e melhorar a vida dos homens com sua arte divinal. Falo de Alfredo da Rocha Vianna Junior, mais conhecido por Pixinguinha. Para mim, seu devoto, será sempre São Pixinguinha.

Na verdade veio ao mundo na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em 23 de abril de
1897 (e não em 98, como durante algum tempo se acreditou), dia em que, aliás, se celebra um Santo Guerreiro de nome Jorge. Também, já se vê, não era à tôa que Di Cavalcanti o chamava de “Meu irmão em São Jorge, meu irmão Pixinguinha!”.

(Posso afirmar, embora alguns afirmem que é delírio, que sou testemunha de um belo retrato de Pixinga feito por Di. Estava lá, em seu atelier na rua do Catete, onde o pintor era meu vizinho).

Quando acharam por bem criar o Dia do Choro, outra data não poderia ser escolhida: a do nascimento desse homem que nasceu para enobrecer o gênero, dar-lhe formato e linguagem própria, cheia de melodias ondulantes e ricas de modulações. Quem na vida já não se pegou assoviando o “Carinhoso”? Pois é.

Antes de conhecer fisicamente Pixinguinha, eu ouvia Pixinguinha nas rádios e, sobretudo, o vi, em carne e osso, uma primeira vez, tocando no carnaval na antiga Galeria Cruzeiro, vizinha ao Café Nice, na Avenida Rio Branco. Década de 40.

Depois, pra valer mesmo, foi na década de 50 que o conheci – e aí o grande acontecimento se deu na casa de Jacob do Bandolim, em Jacarepaguá. Pixinga já triscado nos uísques, tocando como gostava seu saxofone perolado, os dedos que eram feito estalactites de tão longos e bonitos e transparentes, as unhas alabastradas e a máscara africana esculpida em estanho ou ônix ou num piche platinado – e aqueles dedos corriam o corpo do instrumento e dele extraíam sons absurdamente maravilhosos. Já abandonara a flauta, por essa época. Problemas de embocadura: a boca fibrilava, os lábios já não obedeciam ao contato da flauta – e o sax entrou na sua vida, definitivamente. Mas Beti, sua mulher, não se conformava. Afinal, tinha o sopro mais bonito entre todos os flautistas.

Aliás, essa é uma das grandes dúvidas de seus biográfos: como enquadrá-lo em sua multiplicidade: compositor, instrumentista, arranjador. Dificil. Mais realista e objetivo é o crítico Ary Vasconcellos:

“Se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é
pouco. Mas se dispõe do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha”.

Tocou desde criança em tudo que era lugar, em teatros e circo, e na verdade aperturas financeiras não as conheceu por falta de trabalho. Quando seu pai morreu em 1917 (ano em
que era gravado o samba “Pelo telefone”), Pixinguinha já se sustentava. Dois anos depois estreiaria no Cine Palais o conjunto que celebraria uma época da nossa música: Os Oito Batutas. Lá estava Pixinga, lá estavam Donga, China e Nelson Alves – negros como ele. Na Companhia Negra de Revistas foi que conheceu Beti, que tomaria como sua mulher para toda a vida. Negro: era negro numa sociedade racista que contestaria sua ida a Paris com seus companheiros em 1922, para representar o Brasil. Imagine, que desaforo! Mas sua genialidade venceria todos esses preconceitos.

Villa-Lobos era um de seus admiradores, e o musicólogo-compositor Basilio Itiberê ensinaria que o contraponto de Pixinguinha (e é só ouvir suas gravações com o flautista Benedito Lacerda) era coisa de mestre. E já que falamos em Benedito Lacerda, convém lembrar que sua parceria com Pixinguinha era meramente simbólica. Pixinga precisava de dinheiro e projeção, que o duo – e mais a parceria que foi consagrada contratualmente – acabou lhe garantindo.

Único luxo a que se permitia: beber. E bebericava seu sagrado uisquinho de segunda a sexta no “Gouveia”, na Travessa do Ouvidor – onde existe hoje sua estátua em bronze. Era o templo onde seus amigos iam adorá-lo, ele Rei Mago. Lá estavam João da Bahiana e Donga, e também Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, que o considerava um santo e um gênio e foi lá um dia pedir-lhe a bênção.

Não dá para dizer qual a música mais bonita de Pixinguinha: se “Carinhoso”, “Ingênuo”, “Sofres porque queres”, “Rosa”, “Lamentos”. Porque ele foi um escultor de belas melodias que, hoje, continuam modernas – com aquele toque de eternidade que os gênios conferem àquilo que fazem. Inventou também belas introduções para melodias por vezes pobres que lhe entregavam para orquestrar. Em tudo que tocava (e tocar, aí, tem o duplo sentido) virava ouro puro. Seu sentido de arranjador precedeu o que modernistas como Radamés Gnattali fariam depois. Fez trilhas para cinema, depois de esgotar seu talento como arranjador e autor de todo tipo de música para os teatros de revista da época.

Podemos dizer um pouco mais : ele tinha um agudo sentido pictórico, diria mesmo cinematográfico, ao elaborar certas músicas. Ele fazia um humor descritivo em obras como
“O gato e o canário”, “Marreco quer água”, “Um a zero”. Nessa última, sua narrativa musical corresponde aos dos comentaristas de futebol, descrevendo as firulas e os mágicos passes dos jogadores. Gênio. Erik Satie não faria melhor.

Sim, acho que deveria falar de nossa relação pessoal. Ela foi inaugurada com um surpreendente pedido para que fosse seu parceiro num Festival Internacional de Música –
nascendo ali o “Fala, baixinho” e uma série de composições que ampliariam os elos de nossa amizade, consolidada nos muitos encontros que marcava no Bar Gouveia, ou para partilhar com ele a carne assada ao molho de ferrugem (“ferruginosa”, corrigia) preparada magistralmente por sua mulher, Beti. Lembrá-lo em minha casa, passando uma tarde comigo, é algo que me comove às lágrimas.

Tive a honra também de ter produzido seus últimos discos: o “Gente da Antiga” (com Clementina de Jesus e João da Bahiana) e “Som Pixinguinha”, ambos na Emi-Odeon. E ainda pude levá-lo ao estúdio para gravar com a Divina Elizeth Cardoso um samba que fizemos – o “Isso é que é viver”.

Quando Mário de Andrade quis saber tudo sobre feitiçaria, candomblé e adjacências para escrever “Macunaima”, não só consultou Pixinguinha, como o tornou personagem daquela rapsódia: é o Olelê Rui Barbosa, Ogan bexinguento, tocador de atabaques. (Não, pelo que se sabe, Pixinguinha nunca tocou atabaques, e no final da vida era um católico fervoroso).

E tão fervoroso que, vou lhes contar agora, que naquele dia acordou cismarento : imagino tenha se persignado, lembrando com prazer a visita que Jacob do Bandolim, amigo e devoto, lhe fizera há alguns dias. Preparava-se para ser padrinho de um batismo numa igreja em Copacabana, e deixara recado para que eu comparecesse. Mostrou-se surpreso quando apareci, antes, em sua casa, sem avisar, apenas com a saudade apertando o coração. Tocou, que milagre! a flauta que há tanto tempo abandonara. Despedimo-nos.

“Morreu como um santo”, repetiriam todos, horas depois, quando se despediu de todos nós em 15 de fevereiro de 1972, em plena Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema.

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Sobre o Autor

Hermínio Belo de Carvalho
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Na área de rádio e televisão, produziu, a partir de 1958, centenas de programas para a Rádio MEC (“Violão de ontem e de hoje”, “Reminiscências do Rio de Janeiro”,“Orquesta de Söpros”) e, também, já ná década de 70, para a TVE. Podemos destacar as séries televisivas “Água Viva”, “Mudando de Conversa”, “Lira do Povo” e “Contra-Luz”. Como diretor-roteirista de espetáculos, sua carreira foi pontuada por diversos sucessos: o musical “Rosa de Ouro” (1965), que lançou Clementina de Jesus e Paulinho da Viola; o concerto (1968) que reuniu Elizeth Cardoso, Jacob do Bandolim, Zimbo Trio e o Época de Ouro. Podemos ainda citar os shows “ Festa Brasil” (Europa, EE.UU.e Canadá); “Face à Faca (1974), Com Simone ; “ Te pego pela palavra” (1975), com Marlene;“ Caymmi em Concerto” (1985),“Chico Buarque de Mangueira” (1998)e outros espetáculos com Luiz Gonzaga, Herivelto Martins, Radamés Gnattali & Camerata Carioca. Em 1999 dirigiu os espetáculos “Clássicas” (com Zezé Gonzaga e Jane Duboc) e “Sessão Passatempo”, com Carol Saboya. Preparou em 2002 o musical “O samba é minha nobreza”.