partitura

O samba só veio a ser registrado como gênero musical específico quando o quarto desses pioneiros, o Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, filho de Tia Amélia mas também freqüentador dos folguedos de Tia Ciata, gravou uma música feita por ele e pelo cronista carnavalesco do Jornal do Brasil Mauro de Almeida, (o Peru dos Pés Frios), baseada em motivo popular que ambos intitularam “Pelo Telefone”.

Ao começo da década dos vinte, um outro personagem muito interessante personificou o gênero que então se consolidava: José Barbosa Silva, na história do samba imortalizado como Sinhô. Nascido em pleno centro carioca (Rua Riachuelo), desde molecote frequentando as rodas de boêmia da cidade, Sinhô entrou para a história do cancioneiro popular como o primeiro sambista profissional. Sua popularidade atingiu a níveis tão altos que a simples cognominação de “Rei do Samba” demonstrava com clareza o enorme prestígio de que desfrutou entre 1920 e 1930, ano em que morreu. O maior de todos os sucessos de Sinhô foi o “Jura”, gravado simultaneamente por Aracy Cortes, a maior estrela do teatro musicado dos anos 20 e 30, e por um jovem cantor da alta sociedade carioca, Mário Reis, lançado na música por Sinhô, de quem ele era aluno de violão.

Nessa época, os anos 20, as revistas musicais dos muitos teatros da Praça
Tiradentes eram o maior centro comunicador e divulgador da música popular antes do advento do rádio.

O samba só viria, contudo, a ser definitivamente estruturado – em sua forma
como é hoje conhecido – por um grupo que habitava o Estácio de Sá, famoso bairro de baixa classe média carioca na segunda metade da década de 20.

Esse grupo de compositores, boêmios e malandros, que hibernavam de dia e floresciam à noite nos botequins “Café Apolo” e “do Compadre”, tinha por líder o compositor Ismael Silva. O grupo do Estácio entraria para a história da MPB como consolidador do ritmo e da malícia do samba urbano carioca, até então muito influenciado pelo maxixe em sua estrutura formal – como “Pelo telefone” e quase todas as obras de Sinhô.

Ismael Silva, a quem deve ser atribuída a responsabilidade histórica de ter sido um dos estruturadores do samba urbano carioca tal como viria a ser conhecido e apreciado nos anos subsequentes, tem ainda o crédito de ter sido o fundador da primeira escola de samba, a “Deixa falar” (1928), que ele organizou junto com Rubem Barcelos, Bide, Baiaco, Brancura, Mano Edgar e Nilton Bastos, inventor do surdo dentro da escola.A “Deixa falar”– que sairia apenas nos carnavais de 29, 30 e 1931 – tinha tanto na forma quanto na timidez de seu número de desfilantes a estrutura dos blocos carnavalescos.

As escolas de samba, na verdade, só se expandiriam com a criação das duas outras que se seguiram à Deixa Falar: a Mangueira de Cartola e a Portela de Paulo da Portela e de Heitor dos Prazeres, que vieram a tomar a forma definitiva de escolas de samba. E a aglutinar sambistas relevantes em seu redor, com comovedora e permanente fidelidade a suas cores.

A partir dos anos 30, registra-se a história da saga gloriosa do rádio no Brasil, inaugurado pelo gênio de Edgard Roquette Pinto, ( um herói modesto e cativante que ainda precisa ser avaliado melhor ao comecinho deste século) e desenvolvido pela esperteza política do estadista Vargas.O rádio (a partir de 1923) e a gravação elétrica (a partir de 1928) fizeram
florescer a época de ouro da MPB, os anos 30, em que irrompem talentos nos quatro cantos do país, especialmente no eixo Rio-S.Paulo. Dele saem para o mundo Ary Barroso e Zequinha de Abreu, e, especialmente,Carmen Miranda, uma fogueira tropical que fez crepitar a Hollywood bem comportada e rigorosamente padronizada dos anos 40.

Foi exatamente em 1945, como que a saudar o fim do conflito, que surge uma figura de rara importância dentro do cancioneiro do povo. E que sustentaria o ritmo e as origens brasileiras pelos anos de crise para a MPB que o fim da guerra indiretamente traria: a avalanche de músicas norte americanas ou as importadas pelos Estados Unidos e despejadas em todo o mundo, sobretudo no Brasil.

O fenômeno, aliás, é de fácil compreensão quando se analisa o fato de que os Estados Unidos saíram da Segunda Grande Guerra como país vitorioso e em fase de expansão mundial, propulsionada pela exportação internacional em massa de seu poderoso parque industrializado, atrás do qual vinha a indústria da diversão.A indústria do lazer representava a consolidação cultural norte-americana no mundo: os filmes, os discos e a música popular, com todos seus modismos, ainda mais sedutores pelas engenhosas campanhas de marketing com que eram promovidos, remetendo-os quase sempre à juventude.

Essa figura excepcional a que me refiro e que teve decisiva participação dentro da afirmação de uma cultura nacional mais ligada às fontes do Brasil, foi Luiz Gonzaga.

Graças à força telúrica e à veemência vocal de Luiz Gonzaga, o baião não somente se manteria nos anos 50 – a década do samba-canção – como determinaria o aparecimento de dezenas de intérpretes e compositores, o principal dos quais, Jackson do Pandeiro, exibiria um tal sentido rítmico para cantar cocos (gênero musical nordestino de andamento bem mais acelerado que o baião) que nunca foi igualado, nem antes dele (gente como Manezinho Araújo, Jararaca e Ratinho ou Alvarenga e Ranchinho), nem depois (gente como João do Vale,Alceu Valença, Xangai, Jorge do Altinho, Elomar ou o recentíssimo Chico César).

Voltando ao sucesso de Carmen na América, antecede ele de poucos anos a história do movimento da bossa-nova no mercado mundial, que consolida, de uma vez por todas, o prestígio internacional da MPB. A ponto de ejetar nomes como Tom Jobim, João Gilberto e Vinícius de Moraes para as estratosferas do olimpo musical do mundo.

A bossa-nova, aliás, foi antecedida – e até provocada , de certo modo – pela enxurrada dos sambas-canções que inundou a década de 50, transformando a MPB num rio “noir” de lágrimas, fossa e dores de cotovelo, muitas dessas músicas escritas por talentos fulgurantes como Antônio Maria, Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran ou até Caymmi, Braguinha e Ary Barroso, que se destacavam da mediocridade “noir” em que patinava o gênero lacrimejante.
Ao final dos 50, a Bossa Nova nasceu como uma reação ao processo de estagnação em que se encontrava a música popular nos anos 50, invadida por ritmos estrangeiros, em especial os boleros, as rumbas e as canções americanas comerciais, além dos ritmos para consumo cíclico da juventude, como o chá-chá-chá, o rock, o twist e o merengue. Havia ainda uma enxurrada de versões e de sambas canções brasileiros, de baixo nível, onde falta de talento e vulgaridade eram elementos constantes.

A bossa-nova, portanto, surgiria não apenas como uma reação a esse estado de coisas, senão também como integrante da febre pelas novidades que se abriam para o desenvolvimento do país. O governo JK prometia cinqüenta anos em cinco e começava a construir Brasília, a abrir estradas de rodagem e a implantar parques industriais pesados. O Brasil vivia um clima de euforia nos 3 últimos anos da década dos 50, do qual sairiam também movimentos renovadores no campo de vários outros segmentos artísticos: no cinema, o começo do chamado cinema novo; na poesia, os poetas concretistas; na música erudita, os decafonistas; nas artes plásticas, a nova figuração. Em música popular, esse processo geral de renovação encontraria seu caminho com a bossa-nova.

Historicamente, pode-se determinar o aparecimento formal da bossa-nova em 1958 quando se juntaram três personagens em três setores distintos da criação musical: João Gilberto – o ritmo,Antonio Carlos Jobim – a melodia e harmonia, e Vinícius de Moraes – a letra. O mais importante deles (para a bossa-nova, que fique claro), João Gilberto, era um violonista baiano que trazia dentro do violão toda a malícia, a manemolência e até a languidez descansada de sua terra.

Foi ele o criador do ritmo da Bossa Nova, com uma batida diferente e pouco usual de tocar violão, que conferia ao ritmo um sabor de samba mais lento, mais adocicado, ou mais “aguado” – como ironizavam alguns dos algozes do novo movimento.

O primeiro encontro dos três mosqueteiros da bossa-nova (abril, 1958) se daria no LP “Canção do amor demais”, em que a cantora Elizeth Cardoso cantava doze músicas da nova dupla, Vinícius e Tom. Em dois desses números aparecia o violão de João Gilberto, o principal dos quais era o samba intitulado “Chega de saudade” (o outro era “Outra vez”).

A história dos festivais dos anos 60 dá parto a estrelas incandescentes como Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Nascimento, Caetano, Gil , Ivan Lins, Gonzaguinha, João Bosco, todos alinhados – eu até ousaria dizer estimulados – para melhor combater a burrice da censura oficial, esmagadora e intolerável entre 1968 e 1985, se bem que seus arreganhos tivessem começado a partir de 1964. A intervenção militar, de resto, provocou uma imediata mobilização de setores musicais universitários (ou pré-universitários) e que tinham epicentro no CCP (Centro de Cultura Popular) da UNE (União Nacional dos Estudantes). Ali se reuniam compositores como Carlos Lyra, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, ao lado de cineastas como Gláuber Rocha, Carlos Diegues, Joaquim Pedro e Leon Hirschman, os últimos já integrados à revolução do “cinema-novo”, que usava a MPB com veemência
e paixão, em suas trilhas sonoras. Esse também foi um tempo de amadurecimento e reflexões desses jovens músicos e letristas da classe média, em relação ao caldeirão musical que ainda se escondia nos morros e favelas cariocas. E aí são revalorizados personagens que andavam esquecidos como Cartola e Nélson Cavaquinho, da gloriosa Mangueira, ou Zé Keti da Portela.

Mas como não sublinhar o triunfo em venda de discos que foi a volta do samba de raiz, a partir de Martinho da Vila, Beth Carvalho,Alcione,Clara Nunes e Paulinho da Viola, no iniciozinho da década seguinte, os anos 70, apesar de todo seu peso de chumbo do regime militar? Como não registrar, mesmo com alguma eventual insegurança, a chegada do rock brasileiro nos anos 80, com jovens poetas patéticos como Cazuza e Renato Russo dando seqüência aos pioneiros Rita Lee, Raul Seixas e Tim Maia?

Toda a história desse século inicial de MPB, argamassada pela paixão e tendo como pilares as fraldas da sociedade, deságua agora neste comecinho de século.

Esses últimos anos configuram e dão seguimento, com uma certa eloqüência, a todo o legado da MPB, que é hoje, e disso eu não tenho a menor dúvida, o produto número um da pauta de exportação cultural com que conta o país.
Estamos melhores ou piores, em música popular?

Afastando-me do pecado do maniqueísmo e da tentação da crítica individualizada, eu diria que a MPB, vai, como quase sempre esteve,muito bem, obrigado, apesar de alguns pesares. Inicialmente, há que se sublinhar um fato histórico que considero relevante e que é a expansão dos festejos (ou festas) populares de grande porte, sejam as tradicionais, sejam as novas. Umas e outras assumiram nesta década uma dimensão nunca vista antes. E elas se celebram e se constituem a partir da música popular, ou seja, aquelas canções que têm autores definidos (já que a música folclórica se estriba na tradição do anonimato).

As festas ou espetáculos para grandes massas e/ou platéias nascem nas franjas da sociedade e atingem a vários níveis,provocando uma solidariedade social muito rara. E muito valiosa, portanto, para um país de enormes contradições e diferenças sociais como o Brasil.

As escolas de samba do Grupo Especial do Rio fazem, especialmente a partir dos anos 90, o espetáculo mais arrebatador do mundo: seus cerca de 50.000 desfilantes são aplaudidos por 80.000 pessoas em duas noites e vistos via tevê, por dezenas de milhões no Brasil e em várias partes do planeta.

Estudiosos afirmam que a indústria do lazer é a que mais cresce no mundo. E também a que mais gera empregos e a que apresenta o maior faturamento. Uma em cada 16 pessoas empregadas no planeta trabalha em atividades ligadas ao lazer.

Sambódromo do Rio de Janeiro, foto de Mônica Volpin

Calcula-se que só no Brasil a indústria da diversão estará recebendo investimentos de cerca de US$ 5 bilhões de dólares até o ano 2.000. O turismo musical emerge neste contexto, como uma das atividades a priorizar. No mundo todo, o turismo gera em torno de 212 milhões de empregos, além do fato de que se trata do setor de menor investimento por emprego gerado. Portanto, o velho dito popular que define o Brasil como “o país do carnaval e do futebol” deve ser repensado em termos econômicos.

Por quase quatro séculos o carnaval carioca respirou apenas o entrudo português. Somente na segunda metade do século XIX tomou ares europeus, não exclusivamente lusitanos.

Até a terceira década do século XX o Carnaval evoluiu sem a intervenção do poder público.

Com a falência das tradicionais bases de sustentação econômica da festa, formadas pela solidariedade de grupos, jornais patrocinadores e Livros de Ouro, o Carnaval passou a ser gerenciado pelo Poder Público, de forma paternalista e política. Por isso, a festa jamais trouxe benefícios econômicos à cidade.

Mesmo a transformação dos desfiles das Escolas de Samba em grande espetáculo pago, não produziu retornos financeiros para o Estado, por falta de tratamento profissional.

Na década de 80, o carnaval carioca perdeu quase por inteiro a diversificação que o caracterizava desde o início do século, reduzindo-se praticamente à sedução esmagadora do desfile principal das Escolas de Samba.

A indústria do Carnaval na cidade do Rio de Janeiro começa a funcionar efetivamente quando as quadras de ensaio das Escolas de Samba recebem os concorrentes do concurso dos sambas-enredo, a partir de agosto-setembro. Nesta época, também os barracões iniciam os trabalhos plásticos dos preparativos do Carnaval. A partir do mês de janeiro, a indústria
do Carnaval esquenta nas quadras de ensaios e barracões, entrando em pleno funcionamento.

Não existe ainda um entrosamento mais eficaz entre os responsáveis pela movimentação da indústria do Carnaval: Poder Público (Embratur, Riotur, Turisrio), Escolas de Samba (LIESA) e Agências de Turismo (ABAV). Não há comunicação entre essas entidades capazes de planejar, por exemplo, visitas turísticas no pré-Carnaval.

Vale dizer que as alas de compositores, tanto do Grupo Especial (Grupo I ), quanto do Grupo de Acesso (Grupo II) gravam CDs, a cada ano, e que chegaram a vender cerca quase um milhão de cópias. Assim também procede o Grupo Especial das escolas de samba de São Paulo, com vendagem mais discreta e prestígio mais modesto, se bem que em fase ascensional.

Quanto às festas e espetáculos de massa e que se consolidaram nesses últimos anos, como deixar de citar a sedução de Parintins (um espetáculo monumental em plena selva amazônica) e a energia das micaretas e carnavais de inverno, hoje em quase todos os estados nordestinos?

Pois é a música popular, a mais pura música popular, produzida pelos trios elétricos e grupos de frevos, maracatus e sambas, que lhes dá essência, substância e conformação de folguedo.

Quanto aos ritmos com que sempre contou o país – aliás, nunca celebramos como deveríamos este extraordinário tesouro capaz de engrandecer qualquer povo – vão eles sendo bem aproveitados. Como não exultarmos com a volta
do forró a partir de 97/98, pilotado por Alceu Valença, Elba
Ramalho e Lenine, trazendo todo o cadinho energético do nordeste e que tem como epicentro Pernambuco? É por isso e por intermédio deles que voltam agora os cocos, as emboladas, os xotes, os xaxados, os baiões e as toadas, além das cirandas, maracatus e frevos.

Também revitalizam-se, a partir do Rio, as resistências esgrimidas pelos pagodes e pelos sambas de Martinho da Vila, Ivone Lara,Zeca Pagodinho, Lecy Brandão, Beth Carvalho e Alcione, antepondo-se ao baixo nível do pagodinho chinfrim e mauricinho, imposto pelas gravadoras à mídia.

Nesses últimos anos, os líderes da geração de 60 continuam a mil, criando espetáculos e discos especialmente sedutores, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Mílton Nascimento, João Bosco, Ivan Lins,Djavan, com os quais correm o Brasil e, quase sempre, o exterior.

As duplas caipiras, de larga penetração junto à massa, ganharam a adesão da mídia, reconciliando pontas que se afastavam.

Desse modo,Xitãozinho e Xororó,Zezé de Camargo e Luciano ou Leandro e Leonardo, dupla tragicamente desfeita pela morte do primeiro em junho de 1998, passam a receber as simpatias amplas, gerais e irrestritas que antes lhes passaram subtraídas, ou exclusividade tributadas a talentos mais robustos como Sérgio Reis, Renato Teixeira, Pena Branca e Xavantinho ou Almir Sater .

Também a partir dos anos 90, especialmente no qüinqüênio 93-98, detectam-se sintomas de novas absorções e misturas na Bahia, celeiro primordial da capacidade brasileira de aglutinar e digerir culturas diversas.A partir do que se convencionou chamar de “axé-music”, irrompem talentos individuais do porte de Daniela Mercury e Carlinhos Brown, que desaguaram na sucessão de bandas de aceitação comercial inegável, como É o Tchan, Mel, Netinho, Cheiro de Amor etc, sucessoras legítimas do modismo internacional que foi a lambada, poucos anos antes.

Mas como falar-se em música popular sem que seja reservado um lugar de honra para o músico do Brasil? Pois é o instrumentista brasileiro consagrado no mundo desde Pixinguinha, o flautista de gênio, que bem pode ser considerado o patriarca da MPB, até por ser o primeiro (junto com Os Batutas) a excursionar à Europa para mostrar o samba e o choro, recém-criados pelo nosso gênio mulato (Paris 1922). Quando o músico brasileiro excursiona para fora do país, ele é quase sempre absorvido e, por vezes, fica por lá.

Aqui no Brasil, contudo, há uma queixa histórica de que ele não é tão prestigiado quanto poderia e deveria. De há muito ouço lamentos de grandíssimas figuras que vão de Waldir Azevedo, Jacob e Pixinguinha a Sivuca, Altamiro Carrilho, Luiz Bonfá e até Tom Jobim e Baden Powell, ou mesmo jovens como Leo Gandelman, César Camargo Mariano, Carlos Malta, Hélio Delmiro, Nonato Luiz ou Guinga e Rildo Hora. Todos se queixaram das poucas oportunidades de tocar, de gravar, divulgar e exibir música instrumental no
Brasil. Ao menos, em relação a outros países por onde eles excursionam com certa freqüência.

Mas, afinal, por que acontece isso com uma música tão estimulante?

Vários, por certo, são os fatores das queixas dos músicos, a começar pela demasiada sedução da música cantada, com letristas e poetas tão antenados em nossa realidade, anseios e sonhos.

Por sinal, ainda sobre esse assunto quase crônico, quero lembrar o que Radamés Gnatalli comentou comigo certa manhã, quando fui buscá-lo em casa para levá-lo ao Museu da Imagem e do Som para um histórico depoimento para a posteridade.

Ele estava recebendo dois jovens estudantes, em busca de suas partituras e ensinamentos. O Mestre foi curto, grosso e dramaticamente verdadeiro:

“– Olhem aqui, meus filhos, para tocar minhas músicas, vocês vão ter que importar dos Estados Unidos. Aqui nunca editei nada.”

Isso foi no final dos anos 60. Hoje a situação já melhorou bastante,mas ainda assim, os esforços para editar mais partituras continuam. Portanto, nutrir-se melhor este personagem essencial da MPB, que é o músico, sempre vale e valerá a pena
.
Como estão valendo – e cada vez mais neste começo de século – os selos (mais, ou menos, independentes) que gravam preferencialmente CDs de músicos em estúdio, ou extraíos de gravações realizadas ao vivo em espetáculos públicos.

Quanto à indústria do disco no Brasil, não há como deixar de comemorar-se um salto vertiginoso de vendagens nesses últimos trinta anos.

Para que se tenha uma idéia mais precisa, vejam-se esses números, fornecidos pela ABPD (Associação Brasileira de Produtores de Disco): em 1972 venderam-se 15.492.652 unidades de discos, em 1984 o número subiu para 43.996.565 e em 1996 para 94.859.730 unidades de disco em todo o país.O que vale dizer um aumento muitíssimo significativo.

Todo o faturamento do disco no Brasil envolveu uma soma de quase 1 bilhão de dólares ao começo do novo século, mesmo com crises econômicas, sendo o setor responsável por 8 mil empregos diretos e 55 mil indiretos, em áreas como shows, radiodifusão, comércio varejista, gráficas, editoras e “ designers”, os chamados segmentos correlatos.

Um dado significativo que ocorreu a partir dos anos 90 foi o aumento progressivo do percentual de discos com artistas brasileiros.

Ao contrário do que muitos de nós acreditávamos e contra o que sempre nos batemos, a proporção de registros fonográficos com repertório e artistas nacionais ultrapassou a 50% em 1995 e agora chega quase a 70% de tudo que é gravado no país.

Bondade da indústria multinacional de discos para com a cultura brasileira ou magnanimidade para com os músicos, autores e intérpretes que fazem música no Brasil e empregam o português como língua de expressão? Nem uma, nem outra. Pura e simplesmente uma lei de mercado, eu diria uma deliciosa imposição do consumidor brasileiro, que prefere ouvir o som de seu próprio país e confirmar sua poderosa identidade nacional.

Com isso, a exportação de música brasileira também tem crescido, especialmente para a América Latina.

Os ritmos mais consumidos do Brasil no exterior, de 1996 para cá, são a bossa-nova, a chamada música autoral (Chico, Caetano, Gil etc) erroneamente apelidada pelas gravadoras de MPB, rock, pagode, axémusic e música sertaneja.

Quanto aos Festivais de Música – não necessariamente aqueles competitivos e atrevidos dos anos 60, que bem que poderiam voltar, por que não? – mas os encontros de gente ligada à música para troca de informações, “workshops”, ensino, cursos e audições devem também merecer uma referência especial e calorosa.

A partir dos Festivais de Inverno de Ouro Preto, tanto os eruditos (dirigidos por José Maria Neves) quanto os populares (supervisionados por Toninho Horta), o Brasil desabrocha em Festivais de Música, na década de 90, especialmente no Estado do Paraná, onde se realizam vários encontros de artistas, liderados pela solidez e respeitabilidade do Festival de Londrina.Há festivais em vários outros estados, muitos deles impulsionados pela ação cultural da FUNARTE, que também editou uma valiosa coleção de
livros sobre música, seus compositores e intérpretes.

Aliás, em relação à rubrica livros sobre MPB, os anos 90 foram generosos: nunca se editou tanto sobre o tema, hoje objeto de interesse acadêmico pelas universidades e “scholars” de vários níveis. Longe já lá se vão os tempos do pioneirismo dos poucos interessados que éramos nós na década de 60, pesquisadores do porte de Ary Vasconcelos, Vasco Mariz, Lúcio Rangel, Sérgio Porto, Sérgio Cabral, Marília Trindade Barbosa, Eneida, Edison Carneiro, Mozart de Araújo, Almirante, Guerra Peixe, Renato de Almeida, Albino Pinheiro, e mais uns poucos gatos pingados. De 1995 para cá, os livros e as teses sobre temas ligados ao universo da MPB cresceram 200%, segundo fontes da FUNARTE.

Os anos finais do século XX, portanto, foram animadores para a MPB. Fica agora muito claro que uma geração nova e novíssima começou a chegar para fecundar o final dos cem anos mais importantes para o nosso cancioneiro, o doloroso, veloz, traumático e riquíssimo século XX.

O melhor desse começo de milênio é que todas as gerações musicais convivem numa razoável harmonia. Afinal, todas elas lapidaram o legado precioso de Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha, Noel, Ary, Caymmi e Braguinha, Chico, Milton e Caetano, Martinho, Cartola, Paulinho da Viola e Noca da Portela, na certeza de que – mesmo com alguns desvios insensatos e certos atalhos inúteis – a música popular do Brasil jamais perderá seu prumo.

Até porque o alicerce de seus pioneiros e seguidores é sólido e sedutor o bastante para faze-la continuar a surpreender o mundo no século cujos passos iniciais agora são dados.


Este artigo é uma reprodução do trabalho original de Ricardo Cravo Albin, disponível em www.dominiopublico.gov.br.

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