partitura

A extraordinária capacitação brasileira de incorporar, de deglutir, de ruminar as mais várias culturas – a meu ver, de resto, a contribuição mais original do Brasil para a história das civilizações , neste milênio – vai encontrar, justamente no nosso cancioneiro, seu espelho mais veemente, provocador e estimulante.

Devo observar que as músicas populares de outros países como Alemanha, França, Portugal, Espanha, Rússia, Itália, toda a Escandinávia e tantos outros (à exceção dos Estados Unidos, onde o jazz se desenvolveu com vigor diferenciado) são muitíssimo mais discretas e – aí sim – avaliadas em modesto patamar cultural. Por quê? Porque a elas faltam as labaredas rejuvenescedoras tanto da miscigenação, quanto as de um país jovem.

Não será apenas por incorporar a palavra popular que a MPB pode exibir, com tamanho luxo, sua melhor e mais nobre configuração: a interface da solidariedade que ela propõe. E – mais que isso – o que ela, concretamente, vem realizando ao longo deste último século.

Mas, dirão alguns, não haverá exagero da parte de exegetas apaixonados em atribuir a um conjunto de canções e artistas do povo tal nível de importância sócio-cultural ? Sim, até poderia haver, se a esse conjunto que hoje tem o simpático apelido de MPB faltasse um dado revitalizador chamado miscigenação.

Pois sempre é útil lembrar-se que nossa música popular é fruto direto – e indissociável – do encontro interracial que culminou no país mulato que somos nós.

A meu ver, a história da música popular brasileira nasce no exato momento em que, numa senzala negra qualquer, os índios começam a acompanhar as mesmas palmas dos negros cativos e os colonizadores brancos se deixam penetrar pela magia do cantarolar das negras de formas curvilíneas. Esse amálgama maturado sensual e lentamente, por mais de quatro séculos, daria uma resultante definida há cerca de cem anos, quando é criado, no Rio, o choro e quando surgem o maxixe, o frevo e o samba.

Daí para cá, esses últimos cem anos, abertos tanto pela Abolição da Escravatura (1888) quanto pela Proclamação da República (1889), assistiram à consolidação de uma revolução cultural que nos redimiu: a dramática ascensão e formatização da civilização mulata no Brasil. E com ela, a consolidação de sua filha primogênita, a mais querida e a mais abrangente, a MPB.

A história desses cem anos é, também, a história dos preconceitos e dos narizes retorcidos da cultura oficial, encastelada na burguesia e na aristocracia oligárquica.Duas exceções à regra geral do preconceito devem ser registradas, até porque envolvem duas mulheres, logo elas que viviam sob o jugo dasbotas de seus maridos. Refiro-me à maestrina e compositora
Chiquinha Gonzaga, filha de marechal do Imperador, que teve a coragem de abandonar um casamento e montar casa própria onde ousava ensinar não só piano, mas até violão, considerado maldito. E cito também uma rara pioneira – dama culta (era cartunista e pintora), Nair de Teffé (a RIAN), casada com o Presidente Marechal Hermes da Fonseca, que teve igualmente o topete de abrir o Palácio do Catete em 1912 para saraus de MPB, onde pontificavam poetas e músicos populares, como Catulo da Paixão Cearense e Anacleto
Medeiros.

Mesmo assim, os muitos sofrimentos impostos aos músicos e poetas do povo espraiavam-se pelas ruas das cidades do Brasil.Sofrimentos que – como me testemunharam pioneiros do samba e do choro, como João da Bahiana, Pixinguinha, Donga e Heitor dos Prazeres – culminavam com o fato de serem presos nas ruas apenas pelo pecado de portarem um violão,“coisa de capadócio, de desocupado,da negralhada”. Ou de serem obrigados a entrar pela porta dos fundos do Hotel Copacabana Palace (Rio) por serem músicos e “ainda por cima negros”, isso lá por volta dos anos 20,mesmo depois de os Oito Batutas de Pixinguinha terem excursionado, e com sucesso, a Paris , centro da cultura e da insolência comportamental do “années folles”.

Na verdade, acredito que, apenas no século XIX, a história da música popular fixaria os primeiros grandes nomes daqueles que iriam formar as bases do que é hoje considerada, com pompa e circunstância, a música popular brasileira.

Ressalte-se, desde logo, que música popular constituía uma criação que é contemporânea ao aparecimento das cidades. Deve-se deixar claro que música popular só pode existir ou florescer quando há povo.Nos três primeiros séculos de colonização houve tipos definidos de formas musicais: os cantos para as danças rituais dos índios e os batuques dos escravos, a maioria dos quais também rituais. Ambos fundamentalmente à base de percussão, como tambores, atabaques, tantãs, palmas, apitos, etc. Finalmente, as cantigas dos europeus colonizadores que tinham berço nos burgos medievais dos séculos XII a XIV. Fora desse tipo de música, o que preponderava era, com certeza, o hinário religioso católico dos padres. Ainda a registrar os toques e as fanfarras militares dos toscos exércitos portugueses aqui sediados, que foram os primeiros grupos orquestrais ouvidos, ao ar livre, no Brasil.

Uma música reconhecível como brasileira começaria a aparecer quando a interinfluência desses elementos produzisse uma resultante. Isso ocorreu, com mais clareza e maior configuração histórica, quando as populações das cidades começaram a se ampliar e a ocupar um espaço físico majoritário.

Nesse quadro geopolítico despontaram Salvador, Recife e Rio de Janeiro, todas com forte influência negra. Essas populações, espalhadas pelas cidades, demandavam novas formas de lazer, ou uma produção cultural. E essa produção se fez representar no campo da música popular pelos gêneros iniciais de lundu e de modinha. O lundu – basicamente negro no seu ritmo cadenciado – ostentava a simplicidade do povo nos seus versos quando cantado, comentando na maioria das vezes a vida cotidiana das ruas. Já a modinha – basicamente branca na sua forma de canção europeia – exibia versos empolados para cantar o amor derramado às marmóreas musas, quase sempre inatingíveis.Dentro dessa configuração, começam a aparecer os primeiros que assumiram a chamada música popular com prioridade. Ou seja, com a exclusividade de abraçar uma qualificação musical capaz de ser cantada, ou tocada, ou até dançada, fora dos salões da aristocracia. Nas ruas, nas praças, nos coretos ou nos guetos mais pobres.

Um dos primeiríssimos personagens de música popular dentro desse contexto foi Xisto Bahia, que retomou a tradição de Domingos Caldas Barbosa, cujas modinhas irônicas levadas à corte portuguesa no século XVIII se tinham transformado em árias pesadonas quando D. João VI aportou no Rio em 1808, fugido da avalanche promovida por Napoleão Bonaparte na Europa. Nessa época, alguns poetas românticos começaram a escrever versos para serem musicados não apenas por músicos de escola mas por simples tocadores de violão.Um desses, e dos mais prolixos, foi o Lagartixa, apelido com que se tornou popular o poeta Raymundo Rebello, cujas músicas logo ganharam os violões anônimos das ruas.

Acredito que Xisto Bahia foi um dos mais completos compositores exclusivamente populares do início da MPB do Brasil. Xisto, violonista, compositor e ator, começou sua carreira em Salvador, onde nasceu em 1842, atuando para uma tímida classe média, que então já se esboçava. No Rio logo depois, chegou a ser co-autor de Arthur Azevedo e foi aplaudido pessoalmente pelo imperador. Com o fim do Império, Xisto entrou em desgraça e morreu pobre e abandonado.

Tragédias, as da pobreza e do esquecimento, que cairiam como maldição por sobre a grande maioria dos vultos da música do povo, a partir daí.

No século XIX, a música ouvida pelas elites era, em geral, as óperas, as operetas e a música leve de salão. Os negros ou os brancos amestiçados das camadas baixas executavam e ouviam, via de regra, os estribilhos acompanhados por sons de palmas e violas. A reduzida classe média – que começou a se incorporar no segundo império – ouvia apenas os gêneros europeus, ou seja,música leve dos salões das elite: a polca, chegada ao Brasil em 1844, a valsa e ainda a schotish, a quadrilha, a mazurca. Dentro dessa realidade, eis que aparece um raio de luz e de invenção, o mulato Joaquim da Silva Callado. Ele criaria o primeiro grupo instrumental de caráter refinadamente carioca e popular no Brasil: o choro, palavra que inicialmente indicava apenas uma reunião de músicos e só depois o nome de gênero musical.

A criação do choro representa um momento mágico de interação da mistura de raças no Brasil, porque fruto do gênio e da criatividade do mulato brasileiro.O novo gênero, uma música estimulante, solta e buliçosa, era executada à base de modulações e de melodias tão trabalhadas que exigiam de seus executantes competência e talento. E, muitas vezes, um virtuosismo que a maioria não possuía. A ponto tal que os editores nem queriam mais editar Callado, que chegaria, contudo, a ser condecorado pelo Imperador com a Ordem da Rosa (1879), morrendo logo depois vitimado por uma das muitas epidemias que grassavam no Rio de cem anos atrás, insalubre e sem esgotos sanitários.

Dentre todos os pioneiros, todavia, duas chamas individuais logo se destacariam dos demais: Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. De 1877 até pouco antes de sua morte, a primeira grande autora de música popular no Brasil fez 77 peças teatrais e 2 mil composições, entre as quais jóias como o tango “Corta Jaca” e a modinha “Lua branca”. Chiquinha ainda teve coragem e tempo para abraçar as causas mais nobres de sua época, como o abolicionismo, saindo muitas vezes de porta em porta para recolher donativos. A revolucionária Francisca também deitou modas, desenhou seus próprios vestidos, fumou charutos, tornou-se notícia, caiu na maledicência popular. Mas fez de sua vida um ato de pioneirismo e coragem até hoje insuperáveis.

A pedido do cordão carnavalesco “Rosa de ouro”, Chiquinha compôs em 1899 a primeira marcha carnavalesca para o carnaval, o “Abre alas”. Foi ainda a fundadora da SBAT (1917) e morreu no Rio com 89 anos, cercada por uma áurea de mito, um ícone tanto de transgressão social quanto da consolidação da música popular.

Ernesto Nazareth

De tão grande importância quanto Chiquinha – e talvez até maior sob uma ótica estritamente musical – Ernesto Nazareth era filho de modesta família da pequena classe média. Aluno aplicado de piano, ele lançou o primeiro tango brasileiro, “Brejeiro” que, no fundo, era quase um choro. Assim se iniciou uma carreira que o transformaria no compositor mais original do Brasil, no dizer de Mário de Andrade: é popular e erudito ao mesmo tempo. Nazareth, contudo, desprezava música popular e era obrigado a tocá-la em lugares plebeus, como ante-salas de cinemas – onde aliás, era ouvido por gente do porte de Darius Milhaud, que nele se inspirou para compor algumas de suas peças. Rui Barbosa era outro personagem famosíssimo que sempre ia ouvi-lo no cinema Odeon.

Dentro dessa linha dos primeiros compositores populares para a classe média então emergente, quero registrar ainda um outro que considero de capital importância: Catulo da Paixão Cearense. Seu prestígio se consolidaria, de fato, nos primeiros anos do século, com o advento das gravações mecânicas.

Pelos velhos discos da casa Edison, na voz do cantor Mário, o prestígio de Catulo não pararia de crescer. Para que se tenha uma ideia da sua influência, ele foi o primeiro a introduzir o violão – instrumento então considerado maldito – no antigo Instituto Nacional de Música, em rumorosa audição (1908) corajosamente promovida pelo Maestro Alberto Nepomuceno.

A mais conhecida composição de Catulo, “O luar do sertão”(1910, gravada pelo Mário para Casa Edison), é usualmente considerada o hino nacional dos corações brasileiros. A famosa peça trouxe a glória definitiva a seu autor e também um “grave desgosto”, como chegou a confidenciar ao pianista e pesquisador de MPB Mário Cabral: a acirrada disputa com o violonista João Pernambuco, que se considerou desde logo o autor da música, fato veementemente contestado por Catulo.

Aliás, João Pernambuco foi não só extraordinário músico,mas também autor de obra curta mas interessantíssima, na qual se destaca pelo menos um outro clássico, o choro “Sons de Carrilhão”.

Enquanto Catulo era o grande sucesso na Capital Federal do país, um Rio ainda acanhado e que dava os primeiros passos para se modernizar como grande cidade (“quando o Rio se limpava da morrinha imperial”, no dizer de Carlos Drummond de Andrade), apareceu em 1912 um menino decalças curtas tocando flauta melhor que gente grande. Esse menino virtuoso viria a ser o herdeiro de toda tradição musical inaugurada e cultivada por Nazareth, Chiquinha, Callado, Patápio e Catulo, e também seria – pelo menos ao meu ver – o estruturador e o patriarca de toda a música que viria depois dele: Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha.

Autor de vasta obra, em que pontifica uma das mais célebres páginas do cancioneiro, Carinhoso (com versos de João de Barro, o Braguinha), Pixinguinha criou inúmeros conjuntos musicais dos quais se destacou “Os Oito Batutas”, o primeiro a excursionar fora do Brasil (1922, Paris), levando na bagagem o choro, o samba e o maxixe, todos eles temperados com o melhor da alma brasileira mulata e travessa. O Maestro Alfredo Viana foi também o primeiro músico brasileiro, já consagrado como flautista, compositor e chefe de orquestra, a fazer arrojados arranjos orquestrais para as marchinhas e sambas de carnaval em plena Época de Ouro da MPB (década de 30).

O samba iria nascer da música à base de percussão e de palmas, produzida por esses negros e que podia atender pelos nomes de batucada, e até lundu ou jongo. A palavra de origem africana (Angola e Congo),provavelmente corruptela da palavra “semba”, pode significar umbigada, ou seja, o encontro lascivo dos umbigos do homem e da mulher na dança do batuque antigo. Pode também significar tristeza, melancolia (quem sabe da terra africana natal, tal como os blues nos Estados Unidos).A palavra samba, de resto, foi publicada pela primeira vez (3/2/1838) por Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama na revista pernambucana Carapuceiro: definia então mais um tipo de dança, sem maior interesse.

Além das rodas de capoeira e de batucada, quase sempre realizadas nas ruas e praças das imediações, ficaram célebres os festejos nas casas das hoje celebradas Tias Baianas, das quais se destacava a Tia Ciata – a mulata Hilária Batista de Almeida, dentre todas a mais festejada.

Justamente nas casas das Tias Baianas registram-se não só o nascimento do samba mas também os primeiros nomes da sua história. O mais antigo deles todos pode ser considerado o mestiço José Luiz de Moraes, apelidado de Caninha porque quando menino vendia roletes de cana na Estrada de Ferro Central do Brasil.

Ainda nessa fase heróica de nascimento do samba há que ser assinalado o nome de Heitor dos Prazeres. Nascido em plena Praça XI , onde também morreria, o sambista Heitor iniciou-se, a partir de 1936, como pintor primitivo, condição em que se consagraria nacional e internacionalmente.

A ponto de certa vez, seus quadros, mostrados em Londres, terem recebido da Rainha Elizabeth a pergunta consagradora: “Quem é este pintor extraordinário?”

Heitor, que seria premiado na primeira Bienal de São Paulo, passou boa parte da vida como contínuo do antigo Ministério da Educação e Cultura, emprego vitalício que lhe fora atribuído pelo poeta Carlos Drummond, seu confesso e público admirador.


Reprodução da obra original de Ricardo Cravo Albin, disponível em www.dominiopublico.gov.br.

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