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A imagem clara que eu tenho, e que permanece até hoje, do inicio dos anos 80, é da cidade de Brasília sitiada pelas forças armadas brasileiras sob o comando do general Newton Cruz, que em pessoa comandava as operações de repressão às manifestações populares pelas “diretas já”. O general empunhava seu chicote à la Goering, tentando em vão encerrar com o “buzinaço” na av. L2 sul, arrancando à força as pessoas de seus carros enfeitados com balões verdes e amarelos. O rebuliço era geral, ecoando ao fundo o hino nacional; era o entardecer de um dia de Outono, um pôr-do-sol bíblico anunciando o crepúsculo de um dos períodos mais terríveis de nossa historia contemporânea. Revelava-se assim a aurora de um novo tempo, novos ares, outros formatos, outras pessoas…

“Sentado embaixo do bloco sem ter nada o que fazer, olhando as meninas que passam…” o trecho dessa canção de 1982 de Renato Russo (uma analogia ao clássico de Jobim e Moraes “garota de Ipanema”?!) traduz precisamente o que era Brasília no começo dos anos 80 para alguém que estava no começo de sua vida, num lugar sem muitas perspectivas, a não ser a certeza de que um dia você vai partir e deixar aquele lugar. De fato eu estava sentado no pilotis do meu bloco na SQS 213 quando por acaso surgiram quatro “punks”, alienígenas, assustadores, armados de seus colorjets que picharam o muro do meu prédio – Aborto Elétrico – , o que era aquilo? Qual a mensagem? Quem eram aqueles caras? Alguma coisa existia e estava representada ali. Era, mal sabia eu, a senha que abriria as portas para o sentido da vida naquele lugar, eram jovens se comunicando com outros jovens, era explícito, as coisas finalmente começavam a fazer sentido.

O Aborto Elétrico foi a primeira manifestação musical na Brasília dos anos 80 que se diferenciava da chatice musical que então vigorava amarrada às presas do conformismo, do marasmo cultural estabelecido há anos. Era impossível resistir à força e explosão de suas apresentações da mais pura catarse, catálise e aglutinação de novas ideias. A vontade de ser jovem e estar bem consigo e fazer valer seu direito à individualidade intelectual, cultural, social, e poder então deixar tudo isso bem claro através da música, dança, teatro, cinema ou artes plásticas, esses eram verdadeiros estandartes de motivação juvenil dispostos a propagar a força de uma nova geração na busca da reconquista de seu espaço social perdido
há décadas.

Apresentações em praças públicas, bares, universidades, festivais de cinema, teatro e dança eram sistematicamente organizadas e acabavam despertando o interesse do público, sacudido pelo impacto de poder se relacionar, entender e participar do que então era colocado de forma direta, racional e emocional em sintonia com suas próprias vidas.– “Não tem mais corinho vocal e vozes em falsete falando das belezas naturais de um país imaginário, nem violãozinho com cordas e orquestra, agora é energia e distorção, tambores rufando em 4 por 4 e a voz gritando pra você:

“Somos os filhos da revolução, somos burgueses sem religião, nós somos o futuro da nação, geração coca-cola…”,” Nas favelas, no senado, sujeira pra todo lado…Que país é esse?”

A seguir o caminho estava traçado, aberto e magnetizado, lá vem a perspectiva e a nítida sensação de prazer e vontade de estar ali pra sempre. Não havia volta, vamos em frente, sempre em frente.

A seguir o caminho estava traçado, aberto e magnetizado, lá vem a perspectiva e a nítida sensação de prazer e vontade de estar ali pra sempre. Não havia volta, vamos em frente, sempre em frente. O que de fato ocorreu a partir dessa insurreição da camada jovem e pensante dos grandes centros urbanos na época pode ser visto como um terremoto sem epicentro, sem nome ou procedência, uma revolução cultural sem Mao ou Qing, tampouco lideres carismáticos identificáveis. Apenas jovens artistas, citando aqui apenas o universo musical, transformando o país de norte a sul, como no Rio de Janeiro com a Blitz, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho; em São Paulo, os Titãs, Ultraje a rigor, Ira!, Inocentes; em Salvador, o Camisa de Vênus, os blocos afro Olodum, Ilê Ayê; de Recife a Porto Alegre muitos outros vieram disseminando suas origens, crenças, ritmos, rompendo todas as barreiras da expressão cultural urbana, integrando o sertão ao asfalto, o mar ao morro, disseminando através de sua onipotência característica os novos meios da produção cultural nesse país, causando drásticas mudanças estruturais na indústria do disco e entretenimento. Com a invasão desses novos artistas nos meios de comunicação de massa, a realização de enormes festivais de música com artistas nacionais e internacionais como “Rock in Rio”, “Hollywood Rock,” entre outros mais, a indústria fotográfica se prontificou de imediato à absorção da promissora matéria-prima. Nunca até então se havia produzido e lucrado tanto com as crescentes vendagens de disco no Brasil. A indústria do disco passou a ser vista com a respeitabilidade e prestígio de quem alcançara a sexta posição do mercado mundial.

As portas estavam definitiva e finalmente escancaradas, possibilitando assim o surgimento e consagração de inúmeros artistas nesse farto caldeirão heterogêneo que é a cultura brasileira. Transformaram-se os hábitos, atitudes e posições do pensamento juvenil, finalmente votou-se para presidente e, entre altos e baixos, as pessoas começavam a acreditar no país. A redemocratização estava estabelecida, a missão estava cumprida, na verdade ela continua, por outros motivos, mas eu continuo por aí sentado embaixo do bloco…, pensando seriamente em começar a gritar de novo.


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