O solo de Django Reinhardt em Flèche d’Or

Conheça a transcrição e análise do solo de Django Reinhardt na música Flèche d'Or, de sua própria autoria. Os aspectos estruturais e harmônicos desta obra, gravada em janeiro de 1952, revelam forte semelhança com Milestones de Miles Davis, gravada em 1958, que é a aceita como o primeiro exemplo de jazz modal. Este artigo é baseado no trabalho acadêmico de Laurent CugnyI, com tradução de Fabiano Araújo.

Flèche d’Or, composição de Django Reinhardt, foi registrada no dia 30 de janeiro de 1952, nos estúdios da gravadora Decca, em Paris. Django na guitarra elétrica, é acompanhado por jovens e afiados músicos franceses da era bebop: Roger Guérin no trompete; Hubert Fol no sax alto; Raymond Fol no piano; Barney Spieler no contrabaixo acústico e Pierre Lemarchand na bateria. O solo de Django Reinhardt em Flèche d’Or é nosso objeto de estudo.

A forma da composição é absolutamente original: trata-se de um AABBA, isto é, uma forma tradicional AABA com a ponte duplicada. Dentre os pouquíssimos exemplos de tal forma no repertório dos “jazzmen” o primeiro a ser lembrado será, sem dúvida, Milestones, de Miles Davis, que foi gravada pelo próprio trompetista seis anos depois de Flèche d’Or. Também são exemplos Bridgehampton Strut, composta e arranjada por Gary McFarland e gravada em 1963; e Midnight Voyage, de Joey Calderazzo, que pode ser ouvida no disco Tales from the Hudson (1996), de Michael Brecker.

Outra característica desta composição é conter apenas um acorde por seção, Si menor (Bm), na Seção A, e Mi com sétima (E7), na Seção B. Isso foi seis anos antes de Milestones e sete antes de Kind of Blue, portanto antes do que pode ser considerado o nascimento do jazz “modal” (embora haja gravações até mais antigas com características modais).

A gravação de uma composição com tais características colocaria, portanto, novos tipos de problemas aos músicos da época. Mais do que a estrutura com a ponte dupla, o que se apresenta como uma dificuldade é o fato de haver apenas um acorde por seção ao invés dos típicos encadeamentos harmônicos do jazz. Seria o desaparecimento dessa marca essencial que, como veremos, acarretará em um erro de execução, na verdade atribuído ao baterista, Pierre Lemarchand.

O erro de compasso em Flèche d’Or

Conforme o que se espera de seu papel de baterista, Lemarchand marca claramente a estrutura do tema na exposição, como mostra o Ex.1, atacando com o bumbo o primeiro tempo de cada nova seção (compassos 1, 17), e também a retomada do tema depois da ponte (compasso 33). Mas, como todo bom baterista de bebop, Lemarchand irá, em seguida, quebrar um pouco as marcações durante o solo de Django, lançando as famosas “bombas” que os conservadores tanto detestam, deslocando os ataques de bumbo para fora do tempo forte dos inícios das seções. (Ex.1)

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Depois de marcar o primeiro tempo do início do solo (Ex.2), Pierre Lemarchand sublinha imediatamente um quarto tempo (compasso 41). No segundo A, no compasso 49, já não é mais o primeiro, mas sim o terceiro tempo que é marcado.

Nada na primeira passagem do B (compasso 57), mas, no primeiro compasso do segundo B (c.65), um terceiro tempo é novamente marcado. Nada no retorno do A (c.73), porém, um quarto tempo sobre o quinto compasso desta parte (c.77). (Ex.2)

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No começo do segundo chorus (Ex.3), Lemarchand acompanha o riff de trompete e saxofone marcando o primeiro e quarto tempo do compasso 81 e do compasso 85, e depois somente o quarto tempo do compasso 88.

Retomando o padrão tradicional, ele volta a marcar o primeiro tempo dos compassos 97 e 101 da ponte. No primeiro compasso da repetição da ponte (c.105), notamos um impasse. O que aconteceu por ali?

Nos compassos 109 e 111, Lemarchand marca os terceiros tempos. Teria ele, deixando-se levar pelo movimento, se confundido e tomado estes terceiros tempos como primeiros? Tanto é o que parece que ele acrescenta dois tempos nos últimos compassos da ponte deixando três colcheias no ar (c.112). Nota-se claramente a desestabilização produzida por todos nos primeiros compassos do último A (c.113 e 114). Mas o grupo se recupera rapidamente. O baterista marca o primeiro tempo do compasso 119. Não há mais ambiguidade e o tema pode ser retomado sem hiatos no compasso 121.

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O objetivo desta análise não é apontar erros de um ou outro músico, mas em observar que o bebop ainda era uma prática recente na época da gravação e também que os músicos – incluindo os bateristas – estavam habituados a seguir os encadeamentos harmônicos que lhes indicavam ou confirmavam o desenrolar da estrutura.

O fato de não haver mais que um acorde por seção elimina com certeza esta forma de percepção. Compreende-se, assim, que uma desestabilização possa ter ocorrido, até mesmo porque além desta ausência de encadeamentos harmônicos, havia uma anomalia de estrutura (o dobramento da ponte). Talvez esta tenha sido a primeiríssima vez daqueles músicos diante deste tipo de dificuldade.

O solo de Django Reinhardt

Django não se apresenta impecável no plano da técnica. Ele agarra em certas frases, particularmente no final (compassos 110-111), e certas notas parecem faltar, por exemplo, nos compassos 43-44, 77 ou 87. Mas, se este aspecto puramente técnico é ultrapassado, todo o solo se mostra de uma inventividade fora do normal. A começar pelo som da guitarra elétrica. Django a toca de tal forma que Marcello Piras chegou a dizer que ele soa “como o papa Jimi Hendrix”. Esta sonoridade é particularmente audível na ponte da exposição do tema (e da reexposição no fim da peça) e, no solo, no início do segundo chorus (c. 81 e c.81 em diante). A partitura do solo estará no fim deste artigo.

E quanto à harmonia, o que pode-se dizer? Certamente andava-se sobre um terreno quase virgem, já que na época havia pouca ou nenhuma referencia em matéria de improvisação sobre um único acorde. Notemos que esses acordes – Bm7 e E7 – são até bem “guitarrísticos” (seriam um pouco mais difíceis para instrumentos de sopro).

Não me parece adequado falar aqui de jazz modal, pois Django não se prende a um único modo, e nem mesmo a vários, mas desafia uma fixação a uma escala, sem cair no atonalismo. Sobre a Seção A (Ex.4), ouviremos com maior frequência a escala de Si menor harmônico (com o Lá sustenido) e a de Si menor natural, porém, constantemente alteradas.

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O solo de Django Reinhardt começa com um bend sobre um Fá natural “urrante” (que pode-se ouvir como uma blue note) para fixar-se, em seguida, sobre a menor harmônica. Porém, logo chega um Dó natural. O solo como um todo é um modelo do tipo “out” que um John Scofield não renegaria. O efeito “out” é reforçado na mesma medida em que é preparado por trechos “in” em determinados momentos. Assim funciona o Dó natural do compasso 44, e também o do compasso 51. (Ex.4)

O arpejo de Sol diminuto que parte do compasso 65 (Ex.5a) concluindo no Ré sustenido (c.66) soa então muito “fora” em relação à harmonia de E7 precedente. Efeito inverso com o retorno imediato do arpejo de E9, por sua vez bastante “dentro”.

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Seguindo esta lógica, o efeito se manifesta novamente no retorno da Seção A (Ex.5b): a harmonia de Bm é executada bem “in”, unicamente com as notas do acorde perfeito (mesmo estando elas ornamentadas) em um arpejo superposto culminando em um Dó e um Sol naturais triunfantes de dissonância (c.75). (Ex.5b)

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Em toda a Seção A do segundo chorus (Ex.6), Django toca bastante “in”, sobretudo entre os compassos 89 e 92, antes de trabalhar durante os quatro compassos seguintes um Lá sustenido bem dissonante.

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O Ex.7 mostra que Django mantêm esta linha de improviso com um primeiro B também muito dissonante antes de tocar os compassos 105 a 108, bem consonante. Ele arrisca, enfim, uma figura realmente atonal nos compassos 109-110, mas agarra “guitarristicamente” (talvez, quem sabe, devido a esta proeza harmônica).

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Notaremos, ainda, que Django toca o mesmo arpejo superposto de E9 nos compassos 66-67, na ponte do primeiro chorus (Ex.5a, mostrado anteriormente) e nos compassos 107-108, no segundo chorus (Ex.7). Manifestamente, ele se presta a ter este arpejo sob os dedos e utilizá-lo também nas Seções A, nos compassos 78-79 (Ex.5b) e nos compassos 117-118 (Ex.7), onde ele faz soar como um Bm6.

Django emprega, vez por outra, um procedimento que encontraremos também no Miles Davis modal. Tal procedimento consiste em tocar cadências mesmo que a seção rítmica permaneça parada em um mesmo acorde. Este é o caso, a meu ver, nos compassos 49-51 (Ex.8).

Sobre o compasso 49, ele toca um arpejo que pode ser considerado um C#7(b9) seguido de uma harmonia de F#7(b9), no compasso 50, antes de tocar o Ré natural do acorde de Si menor no primeiro tempo do compasso 51: trata-se aqui de um movimento II-V-i. O mesmo tipo de coisa ocorre nos compassos 46-48, 54-56 (Ex.8) e 79-80 (Ex.5b, mostrado anteriormente).

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Também há o que dizer sobre o aspecto rítmico. Django se presta a vários exercícios de dissimetria (Ex.9), identificados particularmente nos compassos 93-97 e também nos compassos 101-104, que se destacam na medida em que se alternam, da mesma forma como percebido para a harmonia, com frases mais “in” ritmicamente (c.89-92, c.97-100).

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Escutando tal obra-prima, parece absurdo quando Roger Paraboschi, que tocava com Django na época, confessa que para alguns jovens músicos da época, Django era… quadrado (no texto riginal o nome usado é “ringard”, um trocadilho com o sobrenome de Django Reinhardt).

Laurent Cugny; Tradução de Fabiano Araújo

Transcrição completa do tema de Flèche d’Or

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Transcrição completa do solo de Django Reinhardt

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Este artigo é baseado no trabalho original de Laurent Cugny, com tradução de Fabiano Araújo (leia o original AQUI) e está publicado sob uma Licença Creative Commons.

Laurent Cugny, pianista, arranjador e maestro, músico autodidata. Fundou a big band Lumière em 1979 e começou a gravar com esta orquestra a partir de 1981. Em 1987, toca e grava com Gil Evans, e de 1994 a 1997 dirige a Orquestra Nacional de Jazz. Trabalha também como arranjador, notadamente para Abbey Lincoln, Lucky Peterson, Juliette Gréco, David Linx, Ricardo Tepperman. Em 2006, criou no Festival Jazz à Vienne, a ópera-jazz La Tectonique des nuages que fora reapresentada no ano seguinte no Théatre de la Ville em Paris, e gravado em 2009 pelo selo Signature (Radio France). Neste mesmo ano, reformou a Enormous Band de vinte e três músicos que se apresentou nos Festivais de Vienne e de Marciac, e na Cité de la Musique. Em 2001, defendeu a tese de doutorado L’analyse de l’œuvre de jazz: spécificités théoriques et méthodologiques na Universidade Paris-Sorbonne (Paris IV), e em 2004, passou a coordenar pesquisas sobre História do jazz e Teoria do jazz. Professor Titular da Universidade Paris-Sorbonne desde 2006, Cugny é autor dos livros Las Vegas Tango: Une vie de Gil Evans (P.O.L., 1989, traduzido em japonês em 1996), Électrique: Miles davis 1968-1975 (André Dimanche, 1993, reedição Tractatus & Co, 1009), Analyser le jazz (Outre Mesure, 2009). Coordena e é autor de uma coletânea sobre a história do jazz na França, patrocinada pela Agência Nacional da Pesquisa e pela Sacem.

Fabiano Araújo, pianista e compositor, desenvolve tese de doutorado sobre o jazz contemporâneo, desde 2012, na Universidade Paris-Sorbonne (Paris-IV), com bolsa CAPES, junto ao grupo JCMP-OMF (Jazz, chanson et musiques populaires – Observatoire Musical Français). É Mestre em Música pela Escola de Música da UFMG e Bacharel em Música Popular pelo Centro de Artes da UNICAMP. É Professor Assistente do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde contribuiu para a criação o curso de Bacharelado em Música, habilitação em Composição com ênfase em Trilha Musical. Lançou 4 CDs: O Aleph (2007); Calendário do Som – 9 dias (2009) de Hermeto Pascoal, gravado e publicado em Portugal, com a participação do contrabaixista norueguês Arild Andersen do baterista Alexandre Frazão (Brasil/Portugal) e do saxofonista Guto Lucena (Brasil/Portugal); Rheomusi (2011) em trio com Arild Andersen e Naná Vasconcelos, e Baobab trio (2012), com peças de Radamés Gnattali, Baden Powell além de música improvisada em trio.