Christian Scott encontrou um propósito diferente para a sua música. Ele deixou isso bem claro ao lançar o disco Stretch Music (2015), com o discurso de que rock, hip hop e música eletrônica também podem ser parte do jazz.
Já tido como um dos grandes trompetistas dos nossos tempos desde que lançou Anthem (2007), Scott assumiu um novo nome a partir de 2012 – Christian Scott aTunde Adjuah – e começou a operar de forma diferente enquanto instrumentista.
O saxofonista Branford Marsalis, que lançou este ano o álbum The Secret Between the Shadow and the Soul, disse que tocar jazz com quem canta exige maior senso melódico: cada nota deve ser efetiva, para que a música gere maior identificação.
O novo disco de Christian Scott elabora essa nova busca melódica, com canto, percussão e batidas eletrônicas em alguns temas, mais ou menos nessa métrica descrita por Marsalis.
Mas o que vemos em Ancestral Recall é uma técnica mais apurada de soar efetivo. Afinal, no ínterim de Stretch Music e este novo álbum, houve uma trilogia em que o trompetista revisitou seus antepassados musicais de forma antropológica. Foi assim que surgiu a trilogia The Centennial (2017), que reúne a tríade Ruler Rebel, Diaspora e The Emancipation Procrastination.
Dura história americana
Não é preciso conhecer previamente a música de Scott para se sentir impactado. Ancestral Recall tem uma conexão direta com o passado escravista que ajudou a construir a sociedade americana – e, quando digo americana, pode incluir aí Caribe, América Latina e Brasil, nação que mais recebeu escravos por meio do tráfico em toda a história.
Scott costuma esticar bastante as notas em seus temas, por conta de um claro propósito: impactar, gerar reflexão, estender o exercício da memória dos antepassados (e ajudar o ouvinte no processo de refletir sobre o que foi e representa hoje esse passado).
Em seus trabalhos, Christian Scott montou um time de colaboradores fiéis. Mais uma vez temos o cantor nova-iorquino Saul Williams, que faz uma mistura de hip hop e drum’n bass em tom de contínuo protesto, o baterista multiestilístico Corey Fonville e a flautista Elena Pinderhughes, que intensifica a profundidade musical do disco em temas como “Diviner” e “Before”, uma das melhores músicas do disco. Sem falar nas dezenas de outros colaboradores importantes, que ajudaram a materializar a ambiciosa empreitada musical de Scott.
Você pode até se maravilhar com a técnica exuberante que permeia o disco. Ela cativa e trabalha os sensos como poucos álbuns contemporâneos de jazz. O sentir é onipresente, mas o que compõe o enigma da obra é seu maior trunfo. Falo da conexão com algo que não sabemos o que é.
Ouvindo Ancestral Recall, tenho a impressão que Scott não pretendia que o álbum se tratasse de uma busca individual. De forma difícil de explicar, ele interliga um longínquo passado à essência de quem escuta, não importa o momento: sozinho com o seu fone de ouvido ou em um volume mais alto reunido aos amigos, o efeito é impressionante principalmente quando se tem ciência do quanto a violência, a cobiça e a exploração são indeléveis de nossa história.
Ancestral Recall, para mim, remonta aos duros primeiros capítulos que as autoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling escreveram em Brasil: Uma Biografia, ou o despertar de um sentimento de já nascer derrotado, de quando li As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano.
A importação criminosa de escravos africanos na América é tida como dolorosa na música de Scott, mas ele também aproveita para resgatar a força da cultura, da sobrevivência e, principalmente, da resistência, que perdura até hoje na estética, no discurso politizado e no modo de lidar com a vida. Temos muito a refletir sobre os assuntos, principalmente em um país que sabemos que não possui como qualidade a memória. Obrigado por isso, Scott.
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Sobre o Autor
Tiago Ferreira
Editor responsável do Na Mira do Groove, fã de jazz, hip hop, samba, rock, enfim, música urbana em geral.