Esta é uma série de artigos cujo texto é derivado do livro O DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO – UMA OBRA EM DOMÍNIO PÚBLICO, de Sergio Branco, com adaptações. Leia a parte 1.


O que pretendemos com esta série de artigos é fazer a análise do domínio público no direito autoral brasileiro com o objetivo de lhe conferir a devida importância, buscando traçar-lhe os contornos mais precisos – sua estrutura, bem como sua função.

Fazer uma tese sobre domínio público é também fazer uma tese sobre direitos autorais. Como se verá ao longo destes artigos, a abordagem a que nos propomos não se limita a cuidar dos prazos de proteção previstos na lei. Para analisarmos com profundidade e adequação o domínio público, é indispensável discutirmos quais são as obras protegidas e as não protegidas pelo direito autoral; quais são e como devem ser compreendidos os direitos patrimoniais e morais; qual a relevância das limitações e exceções diante do domínio público, etc. Ou seja, o domínio público obriga uma reanálise dos direitos autorais a partir de sua própria perspectiva, ainda que ao leitor desavisado possa parecer estranho uma tese que tenha por objeto um instituto pouco discutido e vagamente tratado na Lei de Direitos Autorais.

O tema é vastíssimo. Inicialmente, porque o domínio público tangencia todos os ramos clássicos do direito civil. Os direitos de personalidade (por conta do direito moral do autor), o direito de propriedade (na discussão acerca da natureza do direito autoral), os negócios jurídicos (em razão dos direitos decorrentes da exploração econômica das obras), os laços familiares e os direitos sucessórios (ao tratarmos dos direitos transmissíveis aos herdeiros) devem ser todos considerados para a perfeita compreensão do tema. E não só. Outros ramos do direito contribuem para a análise da matéria. Daí se percebe a complexa rede jurídica na qual o domínio público se encontra.

O objetivo desta série será trilhar todas essas relações e suas consequências. Em segundo lugar, porque o domínio público exerce função essencial na difusão da cultura e do conhecimento. No momento, vivemos o recrudescimento das regras de proteção aos direitos autorais, fenômeno observado em todo o mundo. Na exata medida em que as os titulares de direitos autorais tentam, em grande medida, proteger suas criações contra qualquer uso não autorizado, o domínio público surge como o grande manancial da cultura, disponível a quem por ele se interesse. E seu aproveitamento conta com relevante importância econômica, social e jurídica.

Para buscarmos atingir o objetivo pretendido, dividiremos o trabalho em 3 partes:

  1. Começamos com o direito de propriedade. Afinal, o domínio público pode ser visto como uma limitação ao direito de propriedade intelectual de que goza o autor da obra protegida por direitos autorais. Por isso, precisamos discutir se existe um único tipo de propriedade ou se há múltiplas propriedades que justificariam tratamento diferente para, por exemplo, bens tangíveis e intangíveis. Sobretudo, é indispensável definirmos se os direitos autorais podem ser de fato qualificados como objeto de propriedade ou se estão sujeitos a outro instituto jurídico. Tratamos, ainda, nesta primeira parte, dos aspectos sociais, econômicos e legais do domínio público, sua base constitucional e qual sua importância dentro do sistema de direitos autorais brasileiro.
  2. A seguir, buscamos encontrar parâmetros internacionais para a aferição dos limites do domínio público. Para tanto, fazemos a análise dos principais tratados internacionais que disciplinam a matéria, bem como de algumas leis estrangeiras e casos paradigmáticos para a discussão do domínio público no sistema internacional.
  3. Finalmente, na terceira e última parte da tese, temos por objetivo esclarecer as fronteiras do domínio público no Brasil, sistematizando a matéria a partir de seu tratamento legal. São analisados, portanto, cada um dos dispositivos da Lei de Direitos Autorais (LDA) que cuidam do domínio público, buscando-se enfrentar algumas das questões mais controvertidas sobre o tema. Concluímos com reflexões acerca de sua função social.

O direito de propriedade

Em março de 2009, foi noticiado pela imprensa que os cantores e compositores Roberto Carlos e Erasmo Carlos haviam rompido o contrato com a gravadora EMI, readquirindo os direitos autorais sobre algumas de suas composições, anteriormente à gravadora. A demanda consistia em poder veicular, por meio de CD e DVD gravados pela Sony/BMG, músicas como “Amor Perfeito”, “Como é Grande meu Amor por Você” e “É Proibido Fumar”, cujos direitos pertenciam, por força contratual, à EMI.

Roberto Carlos e Erasmo Carlos alegavam que quando da assinatura do contrato com a EMI, ainda nos anos 1960 e 1970, não existiam mídias como CD e DVD. Dessa forma, a cessão não poderia se operar a respeito dessas modalidades. Com base em tal argumento, entre outros, a juíza de primeiro grau julgou o pedido procedente.

O que nos interessa na decisão não é propriamente a aplicação da LDA ao caso concreto. Interessante é observar como a juíza se refere à titularidade das composições objeto da disputa judicial. Por diversas vezes, menciona-se a palavra “propriedade” ao longo da sentença. Primeiro, para se dizer que “[a]s gravadoras normalmente obtêm a propriedade parcial ou total dos direitos autorais da composição, conhecidos por cessão ou transferência dos direitos autorais”. A seguir, menciona que “há uma transferência da propriedade da composição à gravadora em troca do pagamento dos direitos autorais ao compositor em parcelas e intervalos de tempo acordados no contrato”. Finalmente, ao comentar cláusulas contratuais abusivas inseridas nos instrumentos contratuais por parte das gravadoras, afirma:

As editoras incluem nos contratos cláusulas que são verdadeiras violações ao direito autoral – e mesmo ao direito civil lato sensu – tendo como objetivo: (i) a propriedade definitiva das obras; (ii) a retenção ilegal do repertório; e (iii) a concessão de adiantamento ou ‘advance’ como maneira de garantir uma ausência de risco do investimento. O primeiro dos atos praticados pelas editoras é o fato de que, a partir da cessão ou edição das obras, passam a exercer a propriedade definitiva das mesmas. Ocorre que a editora musical, que em verdade contrata com o compositor a administração de seu repertório, para fazer crescer a assimilação deste, pretende tornar-se proprietária eterna das composições dos cedentes.

Como observado, a sentença menciona, quanto às obras objeto da disputa judicial,

  1. a propriedade dos respectivos direitos autorais,
  2. a transferência de sua propriedade,
  3. a propriedade definitiva dos bens (no caso, a composição musical) e até mesmo
  4. sua propriedade eterna.

Em nenhum momento, entretanto, faz-se referência ao termo “propriedade intelectual”, nem tampouco é referida qualquer de suas peculiaridades. O direito autoral é tratado, aqui, como qualquer outra propriedade. Como a propriedade terrena. Ou como a propriedade de bens móveis. A sentença se limita a definir os direitos autorais como objeto de “propriedade”.

Sendo assim, indagamos: é adequado tratarmos os bens protegidos por direito autoral como objeto de propriedade? Fazer a distinção entre a propriedade física e a imaterial é, de alguma forma, necessária (ou útil)? Existe um instituto jurídico a que devemos denominar propriedade capaz de abranger todos os bens passíveis de serem objeto de apropriação?

A ideia de propriedade é, em primeiro lugar, intuitiva. Desde a pré-história, o homem é capaz de formular o conceito de que algo é seu, de que lhe pertence. E apesar de seu conceito variar conforme o sistema político em que esteja inserido e de acordo com a ordem jurídica vigente, a verdade é que a compreensão do que vem a ser propriedade é algo humano. Até mesmo as crianças, ainda que de maneira imprecisa, possuem essa percepção.

Mas o que é propriedade?

O dicionário Houaiss assim a define, entre outras definições aplicáveis:

  1. coisa possuída com exclusividade,
  2. pertença ou direito legal de possuir (algo),
  3. imóvel pertencente a alguém; prédio, casa,
  4. direito de usar, gozar e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem ilegalmente o possua.

Naturalmente, não se espera de um dicionário que traga definição jurídica precisa. Vê-se que os conceitos de posse (1 e 2) e de propriedade imóvel (3) encontram-se sobrepostos. Mas é o item (4) que mais se destaca pela terminologia adotada. O Código Civil brasileiro (ou “CCB”) não define o que vem a ser propriedade. Apenas determina que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.

A conceituação de propriedade pode ser feita à luz de três critérios: o sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente, é de se defini-lo como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem que injustamente o possua. Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei.

Em sentido amplo, propriedade é todo direito irradiado em virtude de ter incidido regra de direito das coisas . É todo direito sobre as coisas corpóreas e a propriedade literária, científica, artística e industrial. Em sentido estritíssimo, é só o domínio. O primeiro sentido é o de propriedade. O segundo é o que corresponde aos artigos do Código Civil. O terceiro é o menos usado nas leis, e mais em ciência. O quarto é mesclado aos outros e quase sempre é o que se emprega quando se fala de proprietário, em relação a outro titular de direito real. Costuma-se distinguir o domínio, que é o mais amplo direito sobre a coisa, e os direitos reais limitados. Isso não significa que o domínio não tenha limites; apenas significa que os seus contornos não cabem dentro dos contornos de outro direito.

É possível sofisticar um pouco mais o conceito ao lhe atribuir nuances variadas. Desde a amplíssima ideia de direito patrimonial (qualquer que seja) até o sentido estrito de domínio.

Ora, até aqui viu-se que o CCB não define o que vem a ser propriedade, embora esta possa ser considerada um direito real complexo, absoluto, perpétuo, exclusivo, que outorga a seu titular o exercício de amplos poderes sobre determinada coisa. Esses poderes incluem as faculdades de usar a coisa, bem como dela gozar e dispor, além de poder reavê-la de quem a injustamente possua ou detenha. Mas nem todas essas considerações bastam para entendermos o que vem a ser o direito de propriedade.

Inicialmente, porque a propriedade é um conceito que varia com o tempo. A seguir, porque a doutrina vem pregando, já há alguns anos, a ideia de que não podemos considerar a propriedade como um instituto de definição única. Finalmente, porque a análise da propriedade necessariamente perpassa por elementos não exclusivamente jurídicos.

Como se sabe, com o resultado da ascensão da burguesia ao poder europeu no final do século XVIII, tornou-se imperativo organizar juridicamente as conquistas burguesas.
Dessa forma, durante o século XIX (chamado não por outro motivo de “mundo dos códigos”), o mundo viu surgir diversos códigos regulando a propriedade, sendo o primeiro deles o Código francês (ou Código Napoleônico) de 1804.

O francês Pierre-Joseph Proudhon escreveu seu célebre tratado “Que é a Propriedade?”, onde critica fortemente o instituto, símbolo máximo da vitória burguesa que se consolidava no século então em curso. Logo no início de sua obra, Proudhon ataca a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) por incluir a propriedade entre os direitos naturais, como a liberdade, a segurança e a resistência à opressão. Afirma ainda que

“o direito de propriedade foi o princípio do mal sobre a terra, o primeiro anel da grande cadeia de crimes e de misérias que o gênero humano vem arrastando desde o seu nascimento”.

Ainda assim, o que se viu nos anos seguintes foi a construção do direito de propriedade como um direito subjetivo por excelência, que passou a integrar o ordenamento
jurídico positivado da maioria dos países.

Public Domain Mark
Este trabalho é baseado no texto O domínio público no direito autoral brasileiro: uma obra em domínio público, de Sergio Branco, identificado por Musicosmos, e é uma obra em Domínio Público.