Os Beatles e o revolucionário uso da tecnologia de gravação em Abbey Road

Com seus singles contagiantes, pout-pourri teatral e capa icônica, o 11º álbum de estúdio dos Beatles, “Abbey Road“, ocupa um lugar especial no coração dos fãs da banda.

Agora que o álbum completou seu 50º aniversário, podemos perceber o quão inovadoras foram suas faixas para a banda.

rua-abbey-road-famosa-pela-foto-dos-beatles
A faixa de pedestres mundialmente famosa, na Abbey Road

No meu livro mais recente, “Recording Analysis: How the Record Shapes the Song” (Análise da Gravação: Como o Registro Molda a Música, sem edição em português), mostro como o processo de gravação pode aprimorar a arte musical, e “Abbey Road” é um dos álbuns que destaco.

A partir de “Rubber Soul“, de 1965, os Beatles começaram a explorar novos sons. Essa busca continuou no “Abbey Road”, quando a banda foi capaz de incorporar habilmente a tecnologia de gravação emergente de uma maneira que diferenciava o álbum de tudo aquilo que haviam feito anteriormente.

Som em movimento

“Abbey Road” foi o primeiro álbum que a banda lançou exclusivamente em estéreo.

O estéreo foi criado no início dos anos 30 como uma maneira de capturar e replicar a maneira como os humanos ouvem sons. As gravações em estéreo contêm dois canais de som separados – análogos aos nossos dois ouvidos – enquanto gravações em mono mantém tudo em um único canal.

Os dois canais do campo estéreo podem criar a ilusão de sons emergindo de diferentes direções, com alguns vindo da esquerda do ouvinte e outros vindo da direita. Em mono, todos os sons são sempre centralizados.

Os Beatles gravaram todos os seus álbuns anteriores em mono, com versões estéreo feitas sem a participação dos Beatles. Em “Abbey Road”, no entanto, o som estéreo é essencial para a visão criativa do álbum.

Observe o minuto de abertura de “Here Comes the Sun”, a primeira faixa do segundo lado do disco.

Se você ouvir o registro em estéreo, o violão de George Harrison emerge do alto-falante esquerdo. Logo se juntam vários sons delicados de sintetizadores. No final da introdução da música, o som de um sintetizador solitário corre gradualmente do alto-falante esquerdo para o centro.

A voz de Harrison entra na posição central, na frente do ouvinte, e é acompanhada por cordas posicionadas à direita do ouvinte. Esse tipo de movimento sônico só pode acontecer em estéreo – e os Beatles empregaram esse efeito com maestria.

A introdução de “Here Comes the Sun” demonstra o espectro estéreo.

Há também a bateria de Ringo Starr em “The End”, que preenche todo o espaço sonoro, da esquerda para a direita. Mas cada peça da bateria é fixada individualmente em uma posição separada, criando a ilusão de que os tambores estão separados em vários locais – uma cacofonia dramática de ritmos que é especialmente perceptível no solo de bateria desta faixa.

‘The End’ confundiu os ouvidos com uma profusão de tambores.

Apresentando: O Sintetizador

Em meados da década de 1960, um engenheiro chamado Robert Moog inventou o sintetizador modular, um novo tipo de instrumento que gerava sons únicos a partir de osciladores e controles eletrônicos que podiam ser usados para tocar melodias ou preencher as faixas com efeitos sonoros.

Harrison recebeu um exemplar de demonstração do aparelho em outubro de 1968. Um mês depois, encomendou um para si.

Os Beatles estão entre os primeiros músicos populares a usar este instrumento revolucionário. Harrison tocou um pela primeira vez durante as sessões de “Abbey Road” em agosto de 1969, quando o usou na faixa “Because”.

O sintetizador acabou sendo usado em outras três faixas do álbum: “Here Comes the Sun”, “Maxwell’s Silver Hammer” e “I Want You (She’s So Heavy)”.

Os Beatles não incorporaram o sintetizador apenas pela novidade ou para efeitos sonoros, como os Ran-Dells fizeram em seu hit de 1963, “Martian Hop“, e os Monkees fizeram em sua música de 1967, “Star Collector“.

Em vez disso, em “Abbey Road”, a banda capitaliza a versatilidade do sintetizador, usando-o criativamente para aprimorar, ao invés de dominar, suas faixas.

Em alguns casos, o sintetizador simplesmente soa como outro instrumento: em “Here Comes the Sun”, o Moog imita a guitarra. Em outras faixas, como “Because”, o sintetizador realmente carrega a melodia principal da música, substituindo efetivamente as vozes da banda.

Em “Because”, o sintetizador imita as vozes dos membros da banda.

Pausa dramática

Em 1969, o disco LP ainda reinava supremo. O Walkman – dispositivo que tornou a música uma experiência mais privada e portátil – ainda não existiria pelos 10 anos seguintes.

Então, quando “Abbey Road” foi lançado, as pessoas ainda ouviam música em uma sala, sozinhas ou com amigos, em um toca-discos.

O disco tinha dois lados; após a última música do primeiro lado, você teria que se levantar, virar o LP e descer a agulha – um processo que pode levar cerca de um minuto.

Os Beatles, conscientes desse processo, incorporaram essa pausa à experiência geral do álbum.

“I Want You (She’s So Heavy)” fecha o lado um. Está cheio de sons energéticos que abrangem todo o espectro estéreo da esquerda para a direita, saltam das frequências mais baixas para as mais altas e incluem varreduras de ruído branco com o sintetizador. Esses sons se acumulam gradualmente ao longo da música, aumentando a tensão – até que de repente para tudo: o ponto em que John Lennon decidiu que a fita deveria ser cortada.

O final de ‘I Want You” é como o clímax de um discurso sendo interrompido.

O silêncio no intervalo de tempo que leva para virar o LP permite que a conclusão dramática e repentina do lado um reverbere dentro do ouvinte.

Então o lado dois começa, e não com um estrondo: é o violão suave e agudo de “Here Comes the Sun”. A transição representa o maior contraste entre quaisquer duas faixas do álbum.

Essa lacuna de silêncio entre cada lado é parte integrante do álbum, uma experiência que você não pode ouvir em “Abbey Road” no Spotify.

“Abbey Road”, talvez mais do que qualquer outro álbum dos Beatles, mostra como uma música pode ser escrita com poesia e o instrumental bem tocado. Mas a maneira como uma faixa é gravada pode ser o toque final do artista em sua música.

William D. Moylan, Professor of Sound Recording Technology and Music, University of Massachusetts Lowell

logotipo-the-conversation
Licença Creative Commons

Este artigo é uma republicação de The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.

The Conversation

[su_box title=”Visite nossa loja:”]

[su_posts template=”templates/list-loop.php” posts_per_page=”5″ post_type=”product,jp_pay_product” taxonomy=”product_cat” tax_term=”300,294,384″ order=”desc” orderby=”rand”]

[/su_box]