Relacionar a influência do candomblé na música brasileira é uma tarefa difícil, quase impossível. Nos acostumamos à percussão do samba, admiramos os atabaques do manguebit mas, ainda assim, temos dificuldade em entender como esse amálgama realmente se deu até chegar à música popular.
Há algumas pistas, entretanto. Clementina de Jesus talvez seja a grande personificação da afrorreligião dentro do samba e temos cantoras como Juçara Marçal e Xênia França interessadas em trazer essas referências para o pop atual.
Este ano, pelo menos mais dois grupos têm trazido novas perspectivas para essa influência – cada um à sua maneira.
Cromossomo Africano
O grupo de Belo Horizonte (MG) liderado pela vocalista Michelle Oliveira acabou de lançar novo disco, Eutu Ubuntu, que possui um significado bem voltado ao coletivo. No texto de divulgação, Michelle explica:
O neologismo Eutu significa “a junção do eu com o outro numa pessoa só”, enfatizando a força do diálogo e a importância de nos reconheceremos nos nossos pares. A palavra ganha força ao lado do termo Ubuntu, palavra africana de origem zulu que significa “sou porque todos nós somos”.
Inspirado por movimentos como Black Rio dos anos 1970 e o formato de canto do candomblé, o Cromossomo Africano fala sobre respeito, diversidade e, principalmente, tolerância. Em algumas canções a big band (que possui 8 integrantes) conta com o apoio do coletivo Tambor Mineiro, conhecido na capital mineira pela realização do “Festejo do Tambor Mineiro”, que celebra anualmente a cultura da congada e a cultura banto, expressões oriundas do Congo e da Nigéria.
O diferencial do Cromossomo Africano, porém, é atualizar essa estética das percussões e do canto ritualístico a discussões atuais no Brasil. “Renovar”, por exemplo, fala sobre ‘virar a chave’ como forma de procurar novos caminhos para resolver problemas gerais. Scratches, samplers e uma leve proximidade com o funk ajudam a fortalecer a canção, sempre conduzida pelo canto determinado de Michelle.
As guitarras de Ricardo Cunha, um dos produtores do álbum (ao lado de Celson Ramos), também são determinantes na jornada musical do grupo. Ao manter o ritmo da música, Cunha faz a ponte entre os muitos estilos revisitados pelo grupo. “Asa para o Pé”, por exemplo, é quase uma Banda Black Rio adaptada à cultura hip hop, com interessante intercalação sonora dos metais de Marcelo Kavalim (sax tenor, teclado e voz) e Leonardo Brasilino (trombone).
O resultado é uma música pop híbrida que rememora com vivacidade uma das principais origens da brasilidade: a mãe-África.
Alabê KetuJazz
O disco de estreia do grupo Alabê KetuJazz apresenta a influência do candomblé de maneira mais expressiva. Logo em “Saudações” e nas primeiras notas da faixa seguinte, “Vássi para Omolú em Si Bemol Menor”, o grupo nos transporta para a essência da religião africana.
É um tipo de som contemplativo e, ao mesmo tempo, reflexivo. Os direcionamentos dos atabaques são acompanhados por sopros pausados que conduzem a uma estranha dança.
Foi exatamente esse aspecto místico o que mais agradou o percussionista francês e líder do grupo, Antoine Olivier. Quando veio ao Rio de Janeiro, em 2006, estava à procura da “espiritualidade afro-brasileira”, até que conheceu o mestre Dofono de Omulú, que foi uma espécie de guru espiritual por vários terreiros.
A ideia de montar um grupo veio em 2013. Ao lado do saxofonista Glaucus Linx, percebeu que o jazz poderia ser uma boa via de conexão entre música e espiritualidade. Então, decidiu montar uma big band com diversos instrumentos percussivos – e diversas participações, também. Em “Vássi”, ele chama o experiente flautista/clarinetista/saxofonista Carlos Malta, parceiro de banda de Hermeto Pascoal. A robusta “Aguéré, a Caça de Odé” tem Henrique Band como colaborador e explora um som mais aberto, explorando o grave do sax-barítono.
Sobre o Autor
Tiago Ferreira
Editor responsável do Na Mira do Groove, fã de jazz, hip hop, samba, rock, enfim, música urbana em geral.