[Continuando o artigo anterior…] No ano de 2010, o diretor de cinema norte-americano Tim Burton adaptou para a tela grande o clássico “Alice no País das Maravilhas“, de Lewis Carroll. Tendo o escritor inglês falecido em 1898, toda sua obra encontra-se em domínio público. Burton teria gasto aproximadamente US$ 200,000,000.00 na produção do longa, obtendo nas bilheterias mais de US$ 600,000,000.00 em seu primeiro mês de exibição.
Em produções de grande porte, como esta, pouca (ou nenhuma) diferença faria a matéria-prima estar ou não em domínio público. Em Hollywood aparentemente há dinheiro suficiente para se adaptar qualquer obra para o cinema, por mais cara que seja a aquisição dos direitos, desde que o projeto se mostre rentável.
O mais interessante é constatar que uma obra escrita há tanto tempo (a edição original de “Alice no País das Maravilhas” é de 1865) ainda tem força para atrair multidões quando adaptada para o cinema. Não é porque obras em domínio público são muitas vezes antigas, datadas ou pertencentes a outra escola cultural (em razão do grande lapso de tempo entre sua criação e o momento em que ingressa em domínio público) que se pode dizer não terem mais apelo popular.
Mesmo que nos Estados Unidos, com sua bilionária produção cinematográfica, não se hesite em pagar pequenas fortunas para se obter o direito de transformar uma obra em sucesso comercial, é fundamental encararmos ainda a construção do domínio público como forma de criação de obras derivadas de maior ou menor porte.
Afinal, não são apenas as adaptações financeiramente bem sucedidas que nos servem de exemplo. Na verdade, as obras em domínio público permitem um grande exercício da criatividade. A peça shakespeareana “Romeu e Julieta” foi adaptada para o cinema pelo menos 50 vezes. E mesmo tendo vivido cerca de três séculos antes da invenção do cinema, Shakespeare é creditado como “coautor” de cerca de 800 filmes baseados em suas peças. No momento, 11 filmes realizados a partir de obras do poeta inglês encontram-se em estágio mais ou menos avançado de produção e seis novas adaptações devem ser realizadas nos próximos anos.
Todos esses filmes podem ter sido – ou não – bem sucedidos em sua jornada comercial, pouco importa. Em primeiro lugar, o domínio público permitiu que as obras originais fossem adaptadas independentemente de pagamento de direitos autorais. Para Hollywood talvez isso faça pouca diferença, mas certamente é elemento fundamental em indústrias culturais menos abastadas.
Em seguida, é possível, com obras em domínio público, explorar enredos que de algum modo já resistiram à passagem do tempo, que são razoavelmente conhecidos do grande público: trata-se de material já testado. Finalmente, é por meio do domínio público que o homem pode reciclar, com aproveitamento econômico, (quase) toda a cultura mundial.
Alguns exemplos curiosos reúnem os três elementos acima: adaptação de obra em domínio público que resistiu à passagem do tempo, em evidente exercício de reciclagem. Recentemente, surgiu uma série de livros que se apropriam de obras famosas (todas em domínio público) para integrá-las na cultura pop.
Uma das mais notórias é “Orgulho e Preconceito e Zumbis“. O escritor e roteirista Seth Grahame-Smith tomou como base o famoso romance de Jane Austen e inseriu os zumbis por sua própria conta. A matéria de Guilherme Freitas no jornal “O Globo” conta como surgiu a ideia: “até o ano passado, a Quirk Books era uma editora desconhecida que publicava livros como ‘As vidas secretas dos grandes artistas’ e ‘O Manual de Batman’. O editor Jason Rekulak matava o tempo livre no YouTube vendo mash-ups, vídeos que misturam trechos de clipes, filmes e programas de TV. Inspirado neles, criou uma forma de aplicar as técnica ao seu ramo: fez uma lista de clássicos com direitos autorais em domínio público (Dickens, Tolstoi, Jane Austen) e uma de coisas que fazem todo mundo rir (zumbis, monstros marinhos, ninjas). Bastou ligar os pontos”.
Segundo os cálculos do próprio autor Seth Grahame-Smith, 85% de seu romance foi escrito por Jane Austen, tendo ele contribuído com os outros 15% (curiosamente o livro circula com a curiosa autoria de “Jane Austen e Seth Grahame-Smith”). Mas foram exatamente esses 15% que fizeram do livro um sucesso editorial. Tanto que a mesma editora publicou “Razão e Sensibilidade e Monstros Marinhos” ainda em 2009 e, em 2010, “Androide Karenina“.
A prática chegou também ao Brasil, onde foram publicados livros como “Dom Casmurro e os Discos Voadores”, de Machado de Assis e Lúcio Manfredi; “A Escrava Isaura e o Vampiro”, de Bernardo Guimarães e Jovane Nunes e “Senhora, a Bruxa”, de José de Alencar e Angélica Lopes.
Porém, não apenas a possibilidade de obter sucesso com obras derivadas nem estimular a criatividade justificam economicamente a existência do domínio público. Ambas as situações dizem respeito diretamente a quem cria. Mas provavelmente o aspecto mais relevante diz respeito ao acesso por parte da sociedade. Enquanto uma obra se encontra protegida, é normal que apenas um titular autorizado pelo autor possa auferir vantagens econômicas por sua exploração. Entretanto, quando a obra ingressa em domínio público, qualquer pessoa – física ou jurídica – pode passar a explorá-la da mesma forma.
Veja-se o exemplo de Sigmund Freud. O psicanalista faleceu em 23 de setembro de 1939, deixando obra de grande importância no estudo da psicanálise. Por isso, sua obra ingressou em domínio público em boa parte do mundo em 01 de janeiro de 2010. No Brasil, até então a editora Imago era a única a ter direito de publicação de seus escritos. Com a entrada das obras de Freud em domínio público, começaram a surgir novas traduções, pelas editoras Companhia das Letras e L&PM. Agora, o público conta com pelo menos três coleções dos estudos psicanalíticos do médico alemão.
As consequências positivas da possibilidade de escolha são evidentes. Cada uma das edições tentará superar em qualidade as demais edições, o que melhora o nível do material disponível ao consumidor. Além disso, ao menos idealmente, o preço tende a ser reduzido e a obra se torna mais facilmente encontrada.
Enquanto “O Alquimista”, o best seller mundial de Paulo Coelho, conta com apenas duas edições em Português, “Dom Casmurro” – que se encontra em domínio público desde o final dos anos 1960 –, por exemplo, tem cerca de 17 edições disponíveis simultaneamente em websites especializados em venda de livros, havendo inclusive um exemplar em audiobook e, ainda, uma versão infanto-juvenil.
Razões jurídicas
As razões jurídicas que justificam a existência do domínio público podem ser analisadas sob vários prismas. Vamos nos concentrar no ordenamento jurídico brasileiro vigente.
Dignidade da pessoa humana
O uso da expressão “dignidade da pessoa humana” no mundo do direito é recente, mas não é uma invenção nacional. No Brasil, foi a Constituição de 1988 que se inseriu, em seu art. 1º, III, que a dignidade da pessoa humana é um dos “fundamentos da República”. Agindo assim, nosso constituinte consagrou tal princípio.
O grande desafio jurídico, no que concerne à análise do princípio da proteção à dignidade da pessoa humana, é lhe definir um conteúdo palpável – assim como se passa com todos os demais conceitos jurídicos indeterminados. No entanto, em virtude de sua inserção recente em nosso ordenamento jurídico, bem como por conta da dificuldade de se definir o conceito de dignidade, o princípio vem sendo usado tanto para permitir quanto para proibir a eutanásia, o abortamento, a pena de morte, a manipulação de embriões, o exame obrigatório de DNA, a proibição de visitar os filhos etc.
Dos elementos relacionados à dignidade da pessoa humana, interessa-nos particularmente a educação. As obras intelectuais são indispensáveis para a concretização dos princípios de acesso ao conhecimento e à educação, cabendo ao domínio público o papel de grande manancial de obras livremente acessíveis e manipuláveis.
Sem acesso a obras intelectuais a garantia do direito à educação fica comprometida. É muito comum encontrarmos reflexões acerca do direito autoral com o objetivo de justificar a proteção ao autor. Mas existe ainda a necessidade de olharmos o direito autoral a partir de outro ângulo, não menos importante – as condições de acesso às obras por parte da sociedade.
Quanto a este aspecto, importante apontarmos que a educação escolar não se dá apenas pelo acesso às obras intelectuais. Há que se permitir a manipulação das obras, o uso criativo destas e a divulgação das obras derivadas, ainda que o fim não lucrativo seja uma condição a ser observada. Criar também é elemento indispensável à formação do estudante e o direito autoral deve servir como estímulo, não como obstáculo. As obras em domínio público podem ser utilizadas de modo muito mais amplo do que aquelas cujos direitos patrimoniais ainda se encontram dentro do prazo de proteção.
Em resumo, entendemos que uma das justificativas legais para a existência do domínio público é auxiliar a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana a partir de diversos aspectos, como a liberdade de expressão e o direito à educação.
A lei brasileira de direitos autorais: restritividade
Tão logo um músico componha uma de suas obras musicais, esta se encontra protegida nos termos da Lei de Direitos Autorais. Não há qualquer necessidade de registro da obra para o surgimento da proteção.
(Ainda assim o registro é recomendável, às vezes obrigatório. A lei 10.192, de 14 de janeiro de 2010, diz que ficam os impressores e gravadoras fonográficas e videofonográficas obrigados a remeter à Biblioteca Nacional, no mínimo, 2 (dois) exemplares de cada obra editada ou gravada, bem como sua versão em arquivo digital, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após a publicação da obra, cabendo à editora, ao produtor fonográfico e ao produtor videofonográfico a efetivação desta medida. O registro não se presta, entretanto, a conferir a proteção pela lei de direito autoral, que já existe desde a criação da obra. Serve, na própria previsão legal, e entre outras justificativas, para assegurar a preservação da memória musical brasileira.)
É evidente que a alusão ao músico é meramente ilustrativa. O mesmo vale para qualquer produção intelectual. Sem qualquer esforço adicional à elaboração da obra, esta se encontra devidamente protegida. E quais as consequências disso?
Em primeiro lugar, como vimos, o registro é dispensável. Caso se opte por registrar a obra, o ato se dará apenas para facilitar a prova de autoria. Por isso, não se pode atribuir ao registro o caráter constitutivo de direito, ao contrário do que se dá, por exemplo, com o registro das marcas.
Em seguida, podemos afirmar que do ponto de vista do autor, este gozará de todas as prerrogativas de proteção da Lei de Direitos Autorais. Dessa maneira, a simples criação atribui ao autor os direitos morais e patrimoniais previstos em lei.
Finalmente, devemos considerar a perspectiva da sociedade. Se por um lado a criação intelectual atribui a seu criador os direitos previstos na Lei, por outro, fica a sociedade obrigada a cumprir os respectivos deveres contrapostos aos direitos de autor. Dessa forma, ao determinar que depende de prévia e expressa autorização do autor a utilização da sua obra por quaisquer modalidades, seguindo-se então uma lista exemplificativa de condutas, determina a lei que fica o uso da obra proibido a menos que uma autorização seja outorgada.
O texto da Lei de Direitos Autorais é criticável por diversos motivos. O art. 29 menciona autorização prévia e expressa do autor quando deveria se referir à autorização do titular. Afinal, nem sempre o autor é o titular dos direitos autorais de obra por ele criada, uma vez que pode tê-los cedido a terceiros.
Outra crítica que se pode fazer é a redundância da redação do mesmo artigo. O legislador está empenhado em afirmar que não importa qual seja o interesse de terceiro na utilização da obra: essa utilização é vedada.
Entretanto, tal regra não pode ser absoluta. Imagine-se a infinidade de inconvenientes caso não houvesse outra forma de se acessar, citar, difundir, criticar ou recriar obras alheias. Em um sistema em que não há direitos absolutos, não se pode pretender que o direito autoral o seja.
Tomemos um exemplo simples. Prevê o art. 29 que a reprodução parcial ou integral de obra protegida depende de prévia e expressa autorização do autor. Pelo disposto neste artigo, a simples cópia de uma única página pareceria violar o dispositivo legal. Chega a ser intuitivo o quão absurda essa conclusão se nos apresenta. Afinal, se assim fosse, toda a pesquisa – de qualquer natureza – no Brasil estaria comprometida. E é para evitar esse tipo de interpretação que a Lei de Direitos Autorais se vale do sistema de limitações aos direitos autorais.
É louvável que haja limitações aos direitos autorais, pela impossibilidade de haver direitos absolutos. No entanto, a dificuldade maior reside mesmo em se estabelecer “limites à limitação para que não seja permitida a eliminação dos efeitos daquele direito fundamental [o direito autoral], mesmo em nome da pretensa defesa de superiores interesses da coletividade” (citação de Eduardo Vieira Manso). Por outro lado, também não podem ser as limitações tão frágeis e ineficazes que acabem por redundar num sistema de proteção exclusiva do autor.
No cenário internacional, a matéria é disciplinada, sobretudo, pela chamada “regra dos três passos” da Convenção de Berna e pelo “fair use” do direito norte-americano.
Como regra geral, prevê o texto da Convenção que aos autores cabe o direito exclusivo de autorizar a reprodução de suas obras, de qualquer modo ou em qualquer forma. No entanto, logo a seguir, o mesmo artigo prevê que “às legislações dos países da União reserva-se a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor”. Esta é a regra dos três passos.
Como se percebe, a regra determina que as legislações nacionais poderão permitir que haja reprodução de obras protegidas por direito autoral independentemente de autorização do titular do direito
- (i) em certos casos especiais,
- (ii) desde que essa reprodução não afete a exploração normal da obra reproduzida e
- (iii) não cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor.
Já o fair use é mecanismo de que se vale a lei autoral norte-americana para permitir o uso de obras alheias protegidas por direitos autorais dentro de determinadas circunstâncias. Trata-se de sistema aberto que prevê situações genéricas e que na prática gera bastante insegurança por parte dos usuários de obras intelectuais.
O fair use seria uma regra geral de determinação da legalidade da utilização de uma obra protegida por direitos de autor (copyright).
Em análise do US Code, José de Oliveira Ascensão aponta os critérios de definição do fair use:
- o propósito e natureza do uso, nomeadamente se é comercial ou para fins educativos e não lucrativos: mas este afloramento não é taxativo, porque entram em conta outras ponderações e nenhum critério tem vigor de aplicação automática. De todo o modo, a natureza comercial do uso é um indicador negativo, uma vez que o direito de autor deve garantir a exploração da obra;
- a natureza da obra: é de se supor que nas obras mais fácticas o âmbito da utilização fair seja maior que nas obras mais imaginativas;
- a quantidade e qualidade da utilização relativamente à obra global: por exemplo, até as citações podem ser postas em causa, se forem de tal modo longas e repetidas que acabem por representar praticamente uma apropriação do conjunto da obra;
- a incidência da utilização sobre o mercado actual ou potencial da obra: este é apresentado por alguns como o mais relevante de todos os critérios.
O mesmo autor tece as principais distinções entre o sistema norte-americano e o europeu ao dizer que “o sistema norte-americano é maleável, enquanto o sistema europeu é preciso. Mas, visto pela negativa, o sistema norte-americano é impreciso, enquanto o sistema europeu é rígido. O sistema norte-americano não dá segurança prévia sobre o que pode ou não ser considerado fair use. O sistema europeu, pelo contrário, mostra falta de capacidade de adaptação”.
O tema é controverso. A opção por um sistema mais aberto, como o americano, ou mais fechado, como o europeu (e ao qual o Brasil se filia) tem vantagens e desvantagens.
O Brasil conta com um sistema fechado de limitações, decorrente de sua filiação ao sistema europeu. A respeito do tema, muito já foi escrito. Praticamente qualquer livro que trate de direitos autorais no Brasil dedicará um número considerável de páginas a explicitar a necessidade, a abrangência e os efeitos das limitações e exceções aos direitos autorais.
Não pretendemos acirrar o debate. O que se pretende, neste ponto, é indicar por que a previsão legislativa das limitações aos direitos autorais é insuficiente sem o instituto do domínio público. Afinal, quanto mais restritiva for a lei, mais dependente a sociedade será do domínio público para gozar do direito de acesso às obras intelectuais em todas as suas possibilidades sociais e econômicas.
O fato de o Brasil contar com um sistema fechado de limitações tem como consequência lógica a indicação expressa, na Lei de Direitos Autorais, das condutas que constituem uso legítimo de obra protegida por direito autoral sem que tal uso constitua violação.
Discute-se muito se o rol apontado no art. 46 da Lei de Direitos Autorais seria taxativo. Em sua grande maioria, a doutrina entende que sim.
O capítulo das limitações aos direitos autorais previstas na LDA se estende por apenas 3 artigos. No primeiro, o art. 46 da LDA (abaixo transcrito), são apresentadas de maneira pontual e pouco sistematizada as hipóteses em que o uso de obra de terceiro não configura violação aos direitos autorais. O art. 47 trata de paráfrases e paródias e o art. 48, que fecha o capítulo, dispõe a respeito das obras situadas permanentemente em logradouros públicos.
As limitações aos direitos autorais consistem, portanto, em hipóteses em que o uso da obra protegida independe de autorização e, ainda assim, é considerado lícito.
A Lei de Direitos Autorais não informa que princípios gerais norteiam nosso sistema de limitações. As hipóteses são apresentadas de maneira assistemática, resultando em conjunto evidentemente incompleto, de difícil aplicação prática e que naturalmente não resiste à afirmação de que deve ser interpretado restritivamente.
Prevê o art. 46 da Lei de Direitos Autorais a respeito das limitações aos direitos autorais:
Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:
I – a reprodução:
(a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos;
(b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qual-quer natureza;
(c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros; ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários;
II – a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro;
III – a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra;
IV – o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou;
V – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização;
VI – a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro;
VII – a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa;
VIII – a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.
Como se pode perceber da leitura dos incisos acima transcritos, não existe um fio condutor único das limitações no direito brasileiro, apesar de serem em número escasso. O uso integral da obra pode se dar em determinados casos (I, V e VI, por exemplo), enquanto em outros é vedado (II e III, notadamente). Se por um lado o fim não comercial pode ser requisito para o uso de obra de terceiro (II, VI), há hipóteses em que o intuito de lucro pode ser perseguido (III, VIII). Melhor seria o legislador ter se valido de cláusulas gerais no caput, tentando identificar nos incisos hipóteses mais flexíveis de limitações aos direitos autorais.
A regra dos três passos de Berna serviu de inspiração direta para a redação do inciso VIII, como visto acima. Nele se encontram explicitamente dois requisitos da Convenção: que a reprodução de pequeno trecho de obra preexistente em obra nova (i) não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem (ii) cause prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.
Tecnicamente, não podemos afirmar serem as limitações aos direitos autorais integrantes do domínio público. No entanto, são indispensável instrumento de acesso a obras protegidas. Na verdade, aí reside a principal distinção entre os dois institutos. As obras em domínio público, como se verá, já não gozam mais da proteção autoral em seus aspectos patrimoniais. À sociedade confere-se, portanto, o direito de utilizá-las economicamente em sua integralidade, independentemente de autorização de quem quer que seja – autor ou titulares de direitos derivados.
Já as obras protegidas encontram nas limitações aos direitos autorais o campo onde o direito autoral não exerce seu monopólio. Porque é dentro das fronteiras das limitações que a sociedade poderá se valer das obras intelectuais protegidas de acordo com as determinações legais.
Em síntese, durante o prazo de proteção, vigoram as limitações aos direitos autorais. Transcorrido o prazo, a obra ingressa no domínio público, deixando de existir limitações, uma vez que deixou de vigorar sobre a obra a proteção econômica conferida pela lei. O domínio público é o destino inexorável das obras protegidas pelos direitos autorais. Daí, podemos afirmar que o domínio público é a regra, sendo a proteção às obras a sua exceção.
Por fim, é importante mencionarmos que nem todas as limitações aos direitos autorais se encontram no art. 46 da Lei de Direitos Autorais. Há diversas outras situações em que o autor sofre restrições à regra geral de que depende de prévia e expressa autorização sua o uso da obra criada.
Dessa forma, podemos afirmar que, em um sistema de limitações tão estreito como é o brasileiro, o domínio público cresce em importância, já que dele dependerá muito mais o pleno exercício dos direitos de acesso, de educação, de liberdade de expressão, entre outros.
No próximo artigo da série: O Domínio Público na Lei Autoral Brasileira.
Artigo baseado no livro O DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO – UMA OBRA EM DOMÍNIO PÚBLICO, de Sergio Branco.