Para entender o domínio público, temos que entender antes o direito de propriedade em suas diversas formas. Veremos a seguir.
Artigo baseado no livro O DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO – UMA OBRA EM DOMÍNIO PÚBLICO, de Sergio Branco.
O direito de propriedade faz parte do direitos das coisas, sendo classificado como um dos direitos subjetivos. Para Gustavo Tepedino, entretanto, “a classificação central que deve ser estabelecida, para a interpretação e aplicação das normas jurídicas, é a que estrema as relações jurídicas patrimoniais, constituídas por situações jurídicas economicamente mensuráveis, e as relações jurídicas não patrimoniais, formadas por situações jurídicas insuscetíveis de avaliação econômica, caracterizadas por interesses não patrimoniais”. Como se verá, tal distinção será crucial na análise dos direitos autorais, por conta do traço distintivo entre os direitos morais e patrimoniais do autor.
Já vimos que o CCB não define o direito de propriedade, limitando-se a informar que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e do direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
Propriedade e o Domínio Público
De acordo com Orlando Gomes, “a propriedade é o mais amplo direito de utilização econômica das coisas, direta ou indiretamente. O proprietário tem a faculdade de se servir da coisa, de lhe perceber os frutos e produtos, e lhe dar a destinação que lhe aprouver”, inclusive de dispor ao domínio público a qualquer tempo. Exerce poderes jurídico extensos.
Esta noção inicial de propriedade é bastante abrangente, podem ser incluídas propriedades tão diversas quanto aquela exercida sobre bens materiais ou quanto esta outra exercida sobre bens imateriais, não é possível tratarmos todas as formas de propriedade como se fossem a mesma. Tanto é assim que cada uma das propriedades, sobre bens móveis e imóveis, rural ou urbana, de bens materiais ou imateriais, de bens particulares ou públicos, é regulada a partir de suas peculiaridades.
Em meados do século XX, Salvatore Pugliatti já havia atentado para a multiplicidade de facetas da propriedade. Em sua análise, separa o tratamento dado em relação aos sujeitos do direito (perfil subjetivo) daquele dado ao objeto (perfil objetivo). Quanto ao primeiro, leva em consideração os aspectos qualitativos (propriedade pública ou privada) e quantitativos (condomínio e propriedade coletiva, por exemplo). Já quanto ao segundo, propõe investigar a propriedade a partir das peculiaridades do objeto.
Para Pugliatti, é indispensável a observância de características intrínsecas do objeto para bem compreendermos como se estrutura o respectivo direito de propriedade. O autor propõe, entre outras possibilidades, o estudo das seguintes categorias:
- coisas corpóreas e incorpóreas;
- coisas móveis e imóveis;
- coisas simples e compostas.
Para cada uma das categorias mencionadas, é possível atribuir uma determinada sistematização do direito de propriedade (ou mesmo sua negação).
Naturalmente, outras categorias podem ser consideradas. A própria Constituição Federal de 1988 (CF/88) dá tratamento distinto aos diversos tipos de propriedade. A partir da potencialidade econômica da propriedade, percebe-se a distinção da disciplina legal.
Na esteira desses princípios, são postos a salvo da desapropriação, para os fins da reforma agrária, a pequena e média propriedades, quando o titular não possuir uma outra (art. 185, I). No mesmo sentido é vedada a penhora da pequena propriedade familiar rural, por débitos derivados da atividade produtiva. A propriedade familiar terá meios específicos de financiamento para o seu desenvolvimento (art. 5º, XXVI)
Em suma, a Constituição estabeleceu “vários estatutos para as diversas situações proprietárias, segundo a destinação do bem – rural ou urbano –; a potencialidade econômica – produtiva ou não produtiva –; e a titularidade, isto é, levando em conta se a aquisição se dá por parte de estrangeiro ou de brasileiro”.
A legislação infraconstitucional também cumpriu com seu papel de disciplinar a propriedade levando-se em conta os aspectos subjetivos e objetivos de que tratou Pugliatti. Os bens imóveis e móveis, de modo geral, estão sujeitos a regras distintas, como por exemplo quanto aos prazos de usucapião e necessidade de registro. Também sujeitos a regras próprias estão os bens públicos quando comparados aos bens privados, especialmente quanto à possibilidade de alienação e, a depender do caso, à possibilidade de uso por parte de terceiros. Os exemplos são inúmeros e para efeitos desta tese, meramente ilustrativos.
Por tudo isso, não nos parece cabível darmos por certo que uma única formulação do conceito de propriedade seja capaz de abarcar tantas e tão variadas situações jurídicas. Nesse cenário, é de fato indispensável começarmos atentando para as peculiaridades que caracterizam a propriedade intelectual a fim de estabelecermos, com rigor técnico, se os direitos autorais podem de fato ser objeto de propriedade.
Propriedade material e propriedade imaterial
Nem toda propriedade recai sobre um bem material. Por séculos, a terra foi o bem mais valioso. No entanto, nas últimas décadas, viu-se um verdadeiro processo de desmaterialização da propriedade. Ações e marcas – ambas sujeitas ao regime das propriedades de bens imateriais, ainda que distintos um do outro – podem valer quantias inimagináveis, frequentemente mais do que qualquer bem material palpável.
De modo geral, a doutrina – tanto brasileira quanto estrangeira – se vale da nomenclatura “propriedade intelectual” sem qualquer questionamento mais profundo, sendo comum identificar em sua natureza um tipo de propriedade com características especiais, e dividindo-a classicamente em dois grandes grupos: os direitos autorais e conexos de um lado e a propriedade industrial de outro.
No direito positivo brasileiro, a propriedade intelectual é tratada no âmbito de diversas leis, sendo as duas mais relevantes a LDA, para a proteção dos direitos autorais e conexos, e a lei 9.279/96, para a proteção da propriedade industrial, conhecida, por isso mesmo, como Lei de Propriedade Industrial (ou LPI). E ainda que a propriedade intelectual seja considerada uma única disciplina autônoma, é importante observarmos que os bens intelectuais são protegidos por institutos jurídicos diferentes, com naturezas jurídicas, peculiaridades e justificações diversas.
De fato, desde o século XIX, variadas têm sido as teorias para tentar compreender melhor o instituto da propriedade intelectual, sendo que as inúmeras (e aparentemente infindáveis) discussões abrangem, entre outros temas de interesse, que bens se encontram protegidos sob a chamada propriedade intelectual e qual sua natureza jurídica, mas vamos nos ater apenas às questões essenciais da propriedade intelectual e a construção do domínio público.
Com essa diretriz como norte, indagamos: em que medida a propriedade intelectual se aproxima e, por outro lado, se afasta, das demais propriedades? É possível inserir de fato a propriedade intelectual ao lado das demais propriedades? Se a propriedade intelectual é de fato propriedade, então estará submetida a determinadas regras jurídicas. Se não, seu regramento será outro.
É certo que entre a propriedade intelectual e os demais tipos de propriedade existem diversas interseções. Desde logo, podemos citar que toda propriedade confere ao seu titular um direito absoluto, característica que também se verifica nos bens protegidos pela propriedade intelectual.
As faculdades conferidas ao proprietário abrangem os direitos de usar e dispor da coisa. O autor de uma música ou o titular de uma patente de invenção, por exemplo, poderão sempre se valer do bem intelectual como melhor julgarem, especialmente no que concerne a seu aproveitamento econômico.
Finalmente, apontamos como um outro ponto de contato entre a propriedade intelectual e as demais propriedades o fato de o direito incidir sobre um bem determinado. Ocorre que o bem protegido pela propriedade intelectual é imaterial, intangível, impalpável, e daí começam a decorrer as principais divergências quando se compara a propriedade intelectual às demais propriedades.
De fato, é justamente a imaterialidade que leva a apontar a primeira das principais diferenças entre a proteção conferidas aos bens que compõem a propriedade intelectual dos demais bens. Os bens intelectuais são não-rivais, o que não ocorre com os outros bens. Significa dizer, de modo simplificado, que um bem protegido nos termos da propriedade intelectual pode ser usado por mais de uma pessoa ao mesmo tempo, com fins diversos, o que é impossível para qualquer outro tipo de bem.
Imagine-se, por exemplo, o uso de um texto ou de uma música. Diversas pessoas, em localidades diferentes, podem usar a mesma obra. (Trata-se aqui da concepção intelectual e não do suporte onde ela se insere, ou seja, o texto e não o livro; a música, não o CD) Ao mesmo tempo, já que o uso por uma pessoa não rivaliza com o uso da mesma obra pelas demais.
Por outro lado, o uso de um bem material – um automóvel, por exemplo – não se dá nas mesmas condições. Como é óbvio, duas pessoas não podem usar o mesmo carro, ao mesmo tempo, com finalidades diversas.
Essa não-rivalidade no uso dos bens protegidos pela propriedade intelectual acarreta o que se convencionou chamar de “falha de mercado”. Como afirma James Boyle:
quando as coisas são fáceis de serem copiadas e difíceis de excluir terceiros, nós estamos diante de um potencial colapso do mercado.
A escassez dos bens materiais garante que apenas parte da sociedade (aqueles que têm interesse em determinado bem e podem por ele pagar) terão acesso a suas reproduções controladas. Em virtude desse controle, mantêm em regra um valor de mercado mais ou menos constante.
Os bens protegidos pela propriedade intelectual têm como característica o fato de poderem (em termos práticos) ser copiados. Se pensarmos no momento atual, percebemos quão facilmente são feitas cópias (muitas vezes perfeitas) de obras protegidas por direito autoral, por marcas ou por patentes, como se já estivessem em domínio público (sem estar). Por isso, o mercado não seria capaz de regular o preço dos bens intelectuais disponíveis. Assim que uma obra intelectual fosse lançada no mercado, seria razoavelmente fácil obter uma cópia não autorizada. O que teoricamente poderia reverter em prejuízo ao titular do direito.
No dizer de Denis Borges Barbosa, “se um agente do mercado investe num desenvolvimento de uma certa tecnologia, e esta, por suas características, importa em alto custo de desenvolvimento e facilidade de cópia, o mercado é insuficiente para garantir que se mantenha um fluxo de investimento”. Como consequência, “a apropriação pelo concorrente de uma nova solução técnica permite que este reduza as margens de retorno do primeiro investidor. Quem não investe aufere, assim, maior prêmio do que aquele que realiza os gastos com o desenvolvimento da tecnologia”.
Daí a necessidade de o Estado intervir para suprir a “falha de marcado” por meio da criação de leis de proteção à propriedade intelectual durante um certo período, após o qual iniciará o domínio público da obra.
No entanto, o simples fato de os bens protegidos por propriedade intelectual serem imateriais não é critério suficiente, por si só, para constituir uma categoria autônoma e independente das demais propriedades. Afinal, há outros direitos imateriais que não se enquadram entre os bens protegidos pela propriedade intelectual. Como exemplo, podemos citar as quotas das sociedades de responsabilidade limitada e as ações das sociedades anônimas. Nestes casos, tratam-se de bens também intangíveis, mas que não se encontram sujeitos à falha de mercado a que anteriormente nos referimos.
No próximo artigo, veremos as demais distinções entre a propriedade intelectual e os demais tipos de propriedade.
Artigo baseado no livro O DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO – UMA OBRA EM DOMÍNIO PÚBLICO, de Sergio Branco.
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