Da varanda do Chez Dan em Contis , no sul da França, vejo a van gigante estacionar e dela sai um sujeito com o meu álbum Texas Bound na mão, apontando-o com ênfase para os meus olhos como se fosse uma câmera. “Rapaz, por onde passo só tem rastro seu e deste disco. Entrei em clubes na Holanda e vi bandas tocando músicas dele”. Um a um, outros saíram da Van e juntaram-se à conversa. Era a Ford Blues Band, e o meu interlocutor original era Patrick Ford, irmão de Robben que, pelo sucesso solo e agenda complicada da época, não estava no projeto. A Ford Blues Band ia abrir a noite nesse dia no Chez Dan.
Eu tocava com músicos do Texas. Um deles era Uncle John Turner, baterista original do Johnny Winter. Uncle e Tommy Shannon eram a banda de apoio de Winter nos anos 70, meus heróis, primeiros discos. E lá estava eu com o meu ídolo de adolescência na bateria.
Com ele vivi histórias de estrada incríveis e inesquecíveis, (inclusive de prisão nos EUA, fica para outro artigo) algumas no Brasil.
Tornamo-nos amigos de verdade , ele preferia ficar na minha casa “com as crianças e Valéria” (minha mulher) em vez de no hotel com “those assholes I see everyday”, como carinhosamente definia o resto da banda.
Uma vez caminhávamos no bairro Paraíso em São Paulo e ele ficou para trás. Tinha parado numa banca a olhar para alguma coisa e me chamou. “Hey Nuño take a look”. Aproximei-me e vi que apontava para uma revista dessas tipo “Blues Masters” ou coisa do tipo, com CD encartado etc..
“Tá vendo Uncle, andando na rua no Brasil você não esperaria ver coisas desse tipo, certo?”
“Não é isso, olhe direito”.
Olhei bem para a capa e vi Johnny Winter tocando baixo, ao lado Jimi Hendrix com a sua eterna Stratocaster e na bateria… Uncle John. Tinha sido numa canja antológica nos anos 70 em Nova York , da qual participaram artistas como Jim Morrison, Patti Smith , se não me engano Rod Stewart e por aí afora.
Voltando ao Chez Dan, ao final da noite fizemos uma canja todos, duas gaitas, duas guitarras, bateristas alternando.
Uncle foi um dos meus maiores gurus, aprendi mais com ele em apenas dias e horas o que não aprendi em anos e anos com outros. Ensinou-me coisas que uso até hoje. Abstrair da plateia e divertir-me com a banda como se ela não estivesse ali, por exemplo, como receita para o sucesso da apresentação. “Nós tocamos para nós, não para a plateia – se a banda se diverte, ela percebe isso e naturalmente se diverte muito também”, disse no meio de um concerto em Bruxelas, chamando todos até à bateria, como numa reunião de emergência. Conseguiu transformar o show que estava nervoso e pouco arrebatador (porque estávamos intimidados com o tamanho da plateia) num antes-e-depois memorável.
Ele tocou em Woodstock. E tocou com Jimi Hendrix, B.B. King, Freddie King, Muddy Waters, Lightnin’ Hopkins. Sabia das coisas?
Em 26/07/2007 acordei com um email de Nico Leophonte, um amigo comum, também baterista no Texas: “Nuno, Uncle John morreu”.
Aos 62 anos. O homem que fundou a banda Krackjack (com Stevie Ray Vaughan e Tommy Shannon e da qual demitiu o primeiro, brincávamos com isso!) se foi. Poucas mortes me impactaram tanto.
“Nós tocamos para nós, não para a plateia, se a banda se diverte ela percebe isso e naturalmente se diverte muito também”, disse no meio de um concerto em Bruxelas…
Sobre o Autor
Nuno Mindelis
Nuno Mindelis teve o primeiro reconhecimento internacional pela Guitar Player Magazine/EUA, a Bíblia mundial da Guitarra, que nos anos 90 o comparou ao lendário Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppelin. Pouco depois, foi eleito o melhor guitarrista independente de Blues ao vencer o 30th Anniversary Guitar Player Magazine Competition, concurso promovido pela mesma publicação. Gravou e fez turnês com a banda Double Trouble, (banda de Stevie Ray Vaughan) e participou de importantes festivais internacionais , anunciado ao lado de nomes como Prince, Diana Krall, George Benson, Oscar Peterson, Jimmy Vaughan, B.B King e muitos outros.
Foi incluído na lista dos 30 melhores guitarristas brasileiros de todos os tempos da Rolling Stone Brasil.