Grupo Kali e seu pioneirismo

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É possível considerar o Kali como o primeiro grupo de música instrumental jazzístico feminino do Brasil, já que não temos provas de nenhum outro grupo formado apenas por instrumentistas mulheres a gravar um elepê com essa proposta musical antes de 1985.

Em 1984, a revista Isto É já anunciava a existência de bandas femininas no eixo Rio-São Paulo como o Sempre Livre (grupo que em apenas sete meses vendeu 35.000 cópias de seu compacto simples Eu sou free) mas, segundo o próprio texto da publicação, o grupo paulistano Kali apresentava um diferencial, suas integrantes “estudaram e estudam música pra valer, ensaiam em meio a um mundo de partituras e desfiam um repertório instrumental que vai de César Camargo Mariano e Clássicos do Jazz até improvisações e músicas próprias” (revista Isto É, 29/08/1984).

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Revista Isto É
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Revista Amiga
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Revista Afinal

História

O nome Kali é referente a uma das divindades do hinduísmo, seus quatro braços evocam a Criação, a Preservação, a Destruição e o dom da Salvação.

O grupo passou por diversas formações até se consolidar como quarteto, contando sempre com a participação de grandes mulheres instrumentistas como Vera Figueiredo (bateria), Renata Montanari (guitarra), Gê Cortes (baixo), Mariô Rebouças (piano), Lis de Carvalho (piano), Tereza Moranduzzo (sax e flauta), Nebel Frota (sax e flauta), Miriam Cápua (percussão), Lilu Aguiar (piano) e Léa Freire (flauta). Com a formação de septeto, temos esse valioso registro do Fábrica do Som, programa produzido e exibido pela  RTC (atual TV Cultura), gravado no SESC Pompeia, ao ar durante os anos de 1983 e 1984:

Grupo Kali no programa Fábrica do Som

O primeiro show das meninas foi no projeto Funarte, no final de 1982. Logo depois passaram a tocar no Persona, bar de destaque da boemia paulistana nos anos 70 e 80, localizado no bairro do Bixiga. As apresentações no Persona foram o ponto de partida para a realização de diversos shows em outros espaços voltados para a música, teatros e casas noturnas da cidade de São Paulo como o Teatro Lira Paulistana  (fundado em 1979, inicialmente localizado num porão da rua Teodoro Sampaio, foi exemplo de resistência no final da ditadura militar com apresentações de importantes nomes da cultura paulista e nacional), Masp, Fábrica do Som, Maksoud Plaza, Teatro do Bixiga, bar Piu Piu, Sesc Pompéia, Centro Cultural Vergueiro, 150 Night Club, Dama Xok, Aeroanta, Latitude 2001 e o “lendário” Sanja, bar localizado próximo ao centro de São Paulo, famoso por reunir músicos de jazz.

Em 1985, já contando a experiência de três anos tocando juntas, Ge Cortes, Renata Montanari, Vera Figueiredo e Mariô Rebouças gravam, sob formação de quarteto (baixo, guitarra, bateria e piano elétrico), o primeiro e único disco do grupo. Ativo entre os anos de 1981 e 1992, o selo Som da Gente produziu ao todo 46 discos de grandes músicos da época como, por exemplo, Grupo Medusa e Hermeto Paschoal.

Entre os títulos de elepês lançados por esse importante selo que muito contribuiu para a história da música instrumental brasileira, encontra-se o álbum Kali, gravado no Nosso Estúdio, na cidade de São Paulo, entre abril e junho de 1985.

O disco

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Jornal O Estado de São Paulo

Embora surgido no final da década de 1960 o jazz fusion alcançou popularidade no Brasil na década de 1980, impulsionado pela realização de memoráveis festivais de jazz no eixo Rio-São Paulo. Como o nome sugere, trata-se de uma fusão musical do jazz com outros gêneros como rock, funk, pop entre outros. No Brasil, devido a sua valorosa diversidade rítmica, essa hibridização foi bastante fértil, e o Kali é um dos frutos dessa tendência.

Entre as nove faixas que compõem o disco, pode-se apontar influências de salsa (Da Tequila), funk (Funk do Tank), balada (Balada pras mina), samba (Pitu e Ubachuva), frevo (Locomotiva) e outros ritmos. De acordo com a guitarrista Renata Montanari, “o Kali não era só um grupo de Jazz Fusion, mas um grupo de Brazilian Jazz Fusion, porque de qualquer maneira sempre tivemos muitos elementos da música brasileira em nossa música e um som com muito punch!” (Montanari, 2020).

Uma outra característica do fusion é a experimentação e uso de timbres eletrônicos. Em relação aos efeitos de guitarra, Renata afirma o uso de pedaleiras de multi-efeitos (Quadraverb e DEP5 da Roland) e  pedais da Boss (overdrive, compressor e volume), além do tradicional amplificador Jazz Chorus 120 da Roland e da guitarra semi-acústica  Ibanez Artist AM-50 (japonesa), até hoje usada pela guitarrista.

Entre as músicas que compõe o disco, mais da metade são composições autorais, três assinadas por Renata, uma por Mariô, outra por Léa Freire, flautista que também participou do grupo. Todas as faixas apresentam harmonias aprimoradas (acordes de empréstimo modal, modulações e graus altos na estrutura dos acordes), convenções rítmicas elaboradas e improvisações. A terceira faixa do lado B, Upa Neguinho, de Edu Lobo, a mais popular do disco, revela que, além de compositoras e competentes musicistas, as meninas do Kali eram ótimas arranjadoras.

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Revista Bizz

Última formação

Um acontecimento natural de grande influência na vida da mulher, sobretudo na sua rotina profissional, é a gestação. Em maio de 1986, a pianista Mariô Rebouças deixou definitivamente o grupo por conta do nascimento de sua filha: “Eu pensei em tirar uma licença à maternidade só por um tempo, mas não consegui voltar. Eu fui curtir a maternidade tranquila, não iria conseguir conciliar as duas coisas.” (Rebouças, 2020).

A substituta de Mariô foi a tecladista Lis de Carvalho, que logo assumiu os shows de lançamento do disco, como os realizados no Cabaré Mineiro e na Funarte em SP, apresentações que contaram também com o reforço de Lilu Aguiar, pianista da  primeira formação do Kali.

Lis de Carvalho contribuiu para o repertório do grupo com composições próprias e arranjos “…quando eu entrei no Kali, o som ficou um pouco mais voltado para o Jazz Rock, na minha opinião. Não temos gravações, mas atualmente há dois links no youtube que comprovam isso.” (Carvalho, 2020).

Os últimos shows da banda foram no projeto Pixinguinha em várias cidades do litoral de São Paulo em 1990.

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Set list de show na Cultura Inglesa
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Ge, Lis, Renata e Vera com Jô Soares
Jornal Diário da Tarde, 29 de julho de 1986

Show Barradas na Cervejaria

Em 1988, o produtor musical Aloysio de Oliveira (disco Elis e Tom) criou um projeto de show chamado Mulher com as cantoras Nara Leão, Leila Pinheiro, Quarteto em Cy e Rosa Passos a ser executado no Canecão, uma famosa cervejaria carioca e também casa de shows.

Com arranjos feitos por Celinha Vaz, a proposta carecia também de uma banda feminina e o convite foi feito ao grupo Kali. Renata, Gê, Lis e Vera aceitaram e foram para o Rio ensaiar o espetáculo. No entanto, depois de um mês de preparação e ensaios com a toda equipe, os shows foram cancelados. Como relata a pianista Lis de Carvalho: “Um dia antes da estréia, quando estávamos indo para o local acertar os detalhes do show, o projeto foi cancelado e voltamos para São Paulo com uma mão na frente, outra atrás, (…) aí resolvemos retomar os ensaios do nosso repertório instrumental e conseguimos uma data no Centro Cultural Vergueiro que chamamos de Barradas na Cervejaria, na verdade essa cervejaria é o Canecão.” (Carvalho 2020).

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Musicistas do Show Mulher com o produtor Aloysio de Oliveira ao centro

Referências de instrumentistas femininas de jazz na década de 1980

Jornal O Globo em 1 de abril de 1986

O título da matéria do jornal O Globo “Mulheres tocam. E bem” apesar de ser favorável ao grupo Kali, revela a escassez de mulheres instrumentistas no mundo da música na década de 1980. Vamos conhecer, através do testemunho de algumas das integrantes do Kali, referências jazzistas femininas dessa época:

Ge Cortes: “No começo da década de 80 quando nós começamos o Kali, eu não conhecia outras baixistas mulheres na música popular. No finalzinho da década de 80, começo de 90, é que começaram a surgir outras baixistas (pelo menos que eu tive notícia, sendo que na época não havia internet). Mas havia um método para contrabaixo elétrico de uma baixista americana chamada Carol Kaye, com o qual eu estudei.”

Lis de Carvalho: “Comecei a estudar piano com minha mãe e depois fui fazer aula com uma professora de piano erudito chamada Lina Pires de Campos, minha mestra e primeira referência (…) Depois conheci a Lilu Aguiar e a Mariô Rebouças por causa do Kali, colegas contemporâneas. Como referência posso mencionar a pianista Eliane Elias.”

Mariô Rebouças: “Duas pianistas que com certeza eu já ouvia naquela época são Nina Simone e a brasileira Tânia Maria. Posso citar também Toshiko Akiyoshi, pianista, arranjadora e band leader, mas não sei se era conhecida aqui no Brasil na época.”

Renata Montanari: “Na época do Kali não tive nenhuma referência feminina de guitarrista ou violonista. A única referência forte que eu tive de imagem na música feminina foi a cantora Elis Regina. Eu fui em praticamente todos os shows dela, e acredito que aquela maneira de fazer música tenha me influenciado bastante.”

Lea Freire: “Não consigo lembrar de nenhuma mulher que tocasse sopro na música instrumental popular, apenas algumas flautistas no meio erudito (…) Na década de 1980, cheguei a tocar com Silvia Goes (piano), Lilian Carmona (bateria), Rosinha de Valença (violão) e Eliane Elias (piano).”

Lilu Aguiar: “Fui amiga de adolescência da baterista Lilian Carmona que frequentava a casa das minhas primas. No CLAM (escola do Zimbo Trio) havia a Mariô, Vera e Eva e as próprias integrantes do Kali (…), já como pianistas famosas e atuantes posso citar Silvia Goes e a Eliane Elias (…) mas há também outras referências como Tânia Maria e Ana Mazzotti.”

Bandas femininas e o mercado de trabalho

Atualmente, não é difícil presenciar mulheres instrumentistas no palco, mesmo assim ainda estamos muito longe de ocupar 50% do número de músicos profissionais que atuam no mercado. “Tocar num grupo exclusivamente feminino é uma experiência inovadora porque estamos descobrindo agora (2020), com o aumento de bandas femininas, o que isso significa. Quando eu entrei para o grupo Kali eu não tinha essa consciência totalmente formada, mas hoje em dia eu sei o que é estar atuando num meio de trabalho em sua maioria masculino, e tenho experiência profissional o suficiente em afirmar que o mundo da música é machista por uma razão cultural (… ), a minha experiência trabalhando com grupo feminino é particularmente interessante, gosto muito.” (Carvalho, 2020).

Para a baixista Gê Cortes, “montar e tocar numa banda só de mulheres fazendo um som bacana é a melhor maneira de mostrar que as mulheres podem sim tocar o instrumento que elas quiserem, resumindo, o som diz mais que mil palavras!” (Cortes, 2020).

Sobre o Autor

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Gabi Gonzalez
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Natural da cidade de São Paulo, Gabi Gonzalez é guitarrista e mestranda em música pela UNICAMP. Formada em guitarra pela antiga ULM "Tom Jobim" (atual EMESP), é pós-graduada em Educação Musical pela FIC e em Música Popular pela FACCAMP. Graduada e licenciada em História pela USP. Desde 2001 trabalha como guitarrista profissional tocando em diversos projetos de diferentes estilos como Jazz, Blues, Rock, Hip Hop e etc. Atualmente é guitarrista da Jazzmin’s Big Band. Influenciada pelo seu professor Olmir Stocker, começou a compor seus próprios temas instrumentais com forte influência de ritmos brasileiros. Seu primeiro disco autoral instrumental, Morro do Eixo, foi lançado em 2012 no Instrumental Sesc Brasil (Sesc Consolação) . Em 2017, gravou seu segundo disco Com Elas com o grupo feminino Elas Quarteto. É professora de guitarra e violão e pesquisadora na área de musicologia.