Andrés Segovia foi responsável por uma revolução na forma de tocar violão, levando o instrumento às salas de concerto onde, até então, não era aceito como um instrumento solista sério – como o violino ou o piano.

A importância de Segovia para o desenvolvimento do violão, tanto do instrumento em si quanto do repertório (e do público, por que não?), é difícil de ser medida. Mas é correto dizer que o violão deixou de ser um instrumento da música popular e folclórica para ser um instrumento de concerto por meio de suas mãos. A essa tarefa Andres Segovia dedicou sua vida.

Pode-se discutir quem foi o melhor violonista da história, o mais técnico, o mais bem sucedido. Mas poucos irão discordar da afirmação de que Segovia foi o maior e mais celebrado violonista que já viveu.

Nascido em 21 de fevereiro de 1893 em Linares, na região da Andaluzia, Espanha, Andrés Segovia foi mandado pelos pais para viver com seus tios, ainda nos primeiros anos de vida – a família Segovia vivia com dificuldades.

Andrés cresceu em Granada, e foi na casa de seus tios – que recebiam diversos músicos em suas festas – que ele se apaixonou pelo violão. Gostava tanto da cidade que costumava dizer que havia nascido lá, ocultando sua real cidade natal.

Na casa de seus tios, que era também sua própria casa, a visita de um violonista de flamenco, que lhe ensinou algumas posições básicas, foi determinante para sua vida.

Algum tempo depois, além de estudar violão em casa, Segovia passou a estudar formalmente piano e violino em um conservatório musical de Granada – afinal, violão era apenas um instrumento de ciganos, para diversão popular. “O violão era tocado apenas em cabarés”, disse ele certa vez.

Nessa época, Andrés Segovia estava aprendendo teoria e história da música, estava ampliando seu conhecimento e refinando os ouvidos com o estudo formal, mas paralelamente levava tudo o que aprendia para o violão, em casa, desde cedo desenvolvendo-se de modo autodidata. Mas com uma formação musical sólida.

Embora tenha sido apresentado ao violão nas festas, esse ambiente não interessava a ele. As salas de concerto sempre foram seu objetivo.

Aos 16 anos de idade Segovia já havia se tornado um violonista impressionante, e foi com essa idade, em 1909 (ano da morte de Tárrega, algo simbólico), que ele se apresentou em público pela primeira vez. Em pouco tempo ele iria tocar em toda a Espanha e até mesmo na América do Sul. As apresentações em Paris, em 1924, foram um marco em sua carreira – que se consolidaria a partir de então.

Mas o que tornava Andrés Segovia um violonista que se destacava dos demais?

Em primeiro lugar, a técnica. Não que ele mostrasse uma ótima técnica, é mais do que isso: Andrés desenvolveu uma maneira de tocar as cordas diferente do que havia. Ele desenvolveu sua técnica com o firme propósito de obter clareza, dinâmica, controle e volume com o violão, de um modo que era inédito até então. Esses eram predicados da execução violonística que ele considerava fundamentais para que o violão fosse aceito nas salas de concerto.

Até então, os artistas tendiam a executar as obras para violão dando ênfase ao caráter popular e emotivo. Andres Segovia era sério e preciso.

Além de desenvolver uma técnica que foi considerada peculiar em sua época, transcreveu e arranjou peças de diversos compositores para o violão, além de estimular que outras peças fossem compostas especialmente para o instrumento – visando as salas de concerto, não a música popular.

O violonista tocava o repertório clássico com precisão e clareza inéditas, e definiu o que seria o instrumento a partir daquele momento. Em seu repertório estavam Chopin, Mendelssohn e Schumann, assim como contemporâneos como Villa-Lobos.

Conferir respeitabilidade ao violão nos meios da música de concerto foi a grande conquista de Andrés Segovia desde seus primeiros anos.

Mas isso não quer dizer que ele rejeitava todos os que vieram antes, pelo menos não completamente. Ele estudou as obras existentes, como as composições e estudos de Francisco Tárrega (1852-1909) e, principalmente, Miguel Llobet (1875-1938). Chegou a ter aulas com Llobet, embora – vaidoso – tivesse o costume de minimizar a influência do mestre no próprio modo de tocar.

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Dedicatória de Segovia para um sortudo Sr. Roberto. Foto: Rmyers / CC BY-SA

Técnica

Em oposição à escola de Tárrega, Segovia desenvolveu um modo de tocar utilizando a ponta dos dedos junto com as unhas, dando mais volume e controle sobre as dinâmicas, além de um polegar forte.

Pode parecer um detalhe sem importância, mas havia duas escolas muito bem definidas: Llobet e Tárrega tocavam com as unhas; Pujol com a ponta dos dedos. É certo lembrar que Tárrega mudou ao longo dos anos e passou a tocar com os dedos, o que só demonstra a importância dessa discussão.

Ao optar por desenvolver um dedilhado diferente de ambas as escolas tradicionais, Segovia desde cedo marcou uma posição.

Separava-se da escola Tárrega também por posicionar a mão direita mais para perto do rastilho. Dessa maneira, ele não apenas obtinha variação de timbres, mas especialmente um som forte, definido e volumoso, algo muito útil para concertos em grandes salas.

Antes de Segovia, violonistas tocavam preferencialmente posicionando a mão que tange as cordas mais próxima da escala do instrumento do que do rastilho, criando um som suave e agradável, mas não capaz de preencher todo o espaço de uma grande sala de concertos.

O talento de Segovia não foi unanimidade

O sucesso alcançado ainda cedo não significa que Andres Segovia fosse uma unanimidade. Em parte, porque o violão era de fato rejeitado como instrumento de concerto por muitos puristas, e essa rejeição vinha tanto do lado dos músicos eruditos quanto dos violonistas populares – notadamente no universo do flamenco espanhol.

Diversas vezes suas interpretações de Bach foram percebidas como excessivamente românticas, o que deturpava o caráter barroco da composição original. Mas Segovia era inflexível em suas convicções e seguiu em frente.

Segundo John W. Duarte, durante os primeiros anos de estudo musical de Andrés, o Romantismo estava em alta na Espanha mais do que em qualquer outro lugar, tendo tido forte influência sobre sua formação.

Os discípulos de Tárrega também não gostavam do caráter rígido que Andrés dava ao violão, pois acreditavam que o instrumento representava o folclore e a emotividade – e não a precisão.

Como se vê, grande parte das críticas condenavam a tentativa de retirar o violão de seu habitat natural, principalmente no inicio da carreira de Andres Segovia. Com o passar do tempo essa desconfiança arrefeceu, mas nunca desapareceu.

Alheio a tudo isso, Andres Segovia continuou a tocar pelo mundo com uma incrível regularidade, lotando as casas onde se apresentava e vendendo muitos LPs – foram mais de 50 registros fonográficos, a maioria com vendagens expressivas para os padrões do universo da música de concerto. Sua agenda de concertos merece destaque, pois ele frequentou os palcos do mundo durante anos a fio, por muito tempo sem deixar mais do que uma semana de intervalo entre as apresentações.

O professor Andrés Segovia

Tendo sido o responsável pelo desenvolvimento técnico do violão, naturalmente Segovia teve discípulos, seguidores e alunos (além de opositores, claro).

Com humor, ele dizia que teve muitos discípulos que nunca conheceu, dando a entender que alguns violonistas mentiam sobre isso com o objetivo de ganhar destaque na esteira do “mestre”.

Sua atitude como professor teve a mesma seriedade e rigidez que ele empregou em suas próprias interpretações. Ele exigia dos alunos uma determinada postura, determinada técnica e interpretação, sem margens para desvios.

Este temperamento controlador e vaidoso deixou algumas marcas entre seus alunos. Um deles foi o virtuoso John Williams, que afirmou a um de seus biógrafos que o professor obrigava seus alunos a tocar estritamente dentro de seu próprio estilo, e que era musicalmente esnobe.

Williams – ele próprio um dos maiores virtuosos da história do violão – estudou com Segovia nos anos 50, e diz que o professor menosprezava qualquer música sem a procedência clássica “correta” e intimidava jovens músicos com métodos de ensino pouco agradáveis.

Segundo ele, Segovia exigia que os alunos copiassem todas as suas inflexões – demandas que “eliminavam qualquer senso de interpretação pessoal de uma peça”, nas palavras de Williams. Não havia espaço sequer para uma outra escolha de dedilhado e digitação, tudo devia ser precisamente de acordo com as orientações do mestre.

Não apenas isso, Segovia julgaria as composições não apenas pela musicalidade, mas também pela origem do compositor. Qualquer peça proveniente de um compositor popular seria desprezada, mesmo que fosse de grande qualidade.

Mesmo com tantas queixas por parte de John Williams e outros alunos, há quem faça uma ponderação, como Graham Wade, violonista clássico e autor de livros sobre Segovia (e um grande fã, naturalmente).

Segundo Wade, as críticas de Williams foram injustas, já que alguns alunos de Segovia tiveram uma carreira de sucesso e desenvolveram estilos muito diferentes entre si.

“O violão de Segovia era sempre absolutamente lírico. Ele via o violão como um instrumento melódico… John Williams talvez seja o guitarrista mais tecnicamente incrível que o mundo já viu… Um sucessor digno de Segovia”, disse John Wade em entrevista para o jornal The Guardian.

O maior violonista de todos os tempos

Com uma longa carreira, tendo enfrentado aplausos e críticas, Andrés Segovia foi reconhecido ainda em vida como o violonista que revolucionou o instrumento. O violão nunca mais foi o mesmo, seja nos meios populares, seja nas salas de concerto. Segovia elevou o nível de modo que era inimaginável antes dele, por isso tornou-se uma lenda.

Há violonistas mais técnicos, mais rápidos, mais emotivos, mais divertidos… Provavelmente há até violonistas melhores, se é que se pode colocar nestes termos. Mas é improvável que alguém tenha sido mais importante ou mais impactante, por isso diz-se que Andrés Segovia foi o maior de todos.

Segovia costumava dizer que tinha alguns objetivos que perseguiu em sua vida, como “retirar o violão do gueto do flamenco, da bebida e das mulheres, onde parecia estar preso”. Além disso, buscou desenvolver um repertório sólido e levar o instrumento para as universidades e conservatórios de música. Foi bem sucedido em todos os aspectos.

Ele de fato desprezava a música pop, como deixou claro em muitas ocasiões: “esse pessoal compõe em cima de ruídos e ainda chamam o resultado de música!”, mas tornou-se também um sucesso popular em sua época, um astro. Mesmo sem abrir mão de suas convicções.

Os violões de Andrés Segovia

Muitos violões, a maioria de alta qualidade, passaram pelas mãos de Segovia – e diversos deles estão em exposição em museus, enquanto outros foram parar nas mãos de colecionadores.

O violão que acompanhou seus primeiros concertos foi fabricado oelo luthier Benito Ferrer, da Casa Ferrer – fundada em 1875 e aberta até hoje. Embora tenha lhe servido nos primeiros anos, Segovia não tinha muitos elogios ao instrumento, que considerava adequado apenas ao estudo.

Casa Ferrer. Foto: guitarreriacasaferrer.com

Em 1913 Segovia foi a Madri para alguns concertos – de pouca repercussão, a propósito. No tempo que esteve lá, tratou de procurar a oficina do reconhecido luthier Manuel Ramírez. Estando lá, tentou alugar um violão de melhor qualidade para seu concerto. O luthier entregou alguns modelos para ele experimentar e, ao ouvir o excepcional violonista do qual nunca ouvira falar, passou para ele um violão de maior qualidade, de spruce e jacarandá-da-bahia, que havia sido feito sob encomenda para Antonio Jiménez Manjón.

O violão soou soberbo nas mãos de Segovia, que adorou o instrumento. Mas Ramírez não alugou o instrumento. Ao contrário: deu de presente, na hora, para Andrés Segovia. A ironia é que Manjón não levara o violão por discordar do preço cobrado – e Segovia levou de graça aquele que foi seu principal violão por décadas e que está exposto no Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque. Ele foi doado ao museu pelo próprio violonista, com a condição de não ser nunca mais tocado por ninguém.

Os herdeiros de Ramírez, anos após sua morte, continuaram fazendo violões para Segovia – e até hoje fabricam reedições do modelo original.

Violão de Manuel Ramírez (1864–1916)

Um outro violão construído por Santos Hernández em 1924 foi seu violão reserva, utilizado em várias ocasiões. Este violão foi doado pelo próprio Segovia em 1932 à Biblioteca Musical da Câmara Municipal de Madrid, onde permanece.

Andrés Segovia também era um admirador do trabalho do luthier Hermann Hauser, que construiu para ele ao menos dois violões. Um deles substituiu definitivamente o violão de Ramírez a partir de 1937. Este violão também está no Met, de Nova Iorque.

Além destes dois violões, Hermann Hauser II também fez diversos violões para Segovia. E Hermann III, o neto, fez ao menos um em 1979.

Ignacio Fleta Pescador foi outro luthier que fez violões para Andrés Segovia e, assim como Hauser e Ramírez, seus herdeiros também fizeram alguns.

Uma vida nas salas de concerto

“Toco flamenco apenas por diversão, apenas para lembrar do tempo em que conseguia tocar bem o flamenco”, dizia. Mas sua paixão era a música clássica, as salas de concerto.

Tocou até idade avançada, sem nunca diminuir seus padrões. Ele dizia que na juventude seus erros eram justificados pela imaturidade, mas que na terceira idade seus erros seriam identificados como senilidade e fraqueza, e isso o fazia estudar com o mesmo afinco da juventude.

Segovia viveu para ver muitas transformações no seu instrumento. No início de sua carreira, ainda usava cordas de tripa animal. Ele próprio foi um dos responsáveis pela adoção do nylon como material de fabricação das cordas, após a Segunda Guerra Mundial. Em 1947 o fio sintético fabricado pela Dupont começou a ser vendida por Albert Augustine e Segovia foi seu primeiro “garoto-propaganda”, ou endorser – come se diz hoje em dia.


Muitos grandes violonistas vieram depois dele, sendo seus discípulos ou não. Mas todos levaram adiante aquilo que Segovia semeou.

No fim de sua vida – Andrés Segovia faleceu em 1987, aos 94 anos – ele havia mudado não só o material das cordas do violão, mas a própria essência do instrumento e de como ele é percebido pelo público. Hoje, todo violonista tem uma dívida de gratidão com Andrés Segovia.

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