John Coltrane (1926-1967), foi um dos mais importantes músicos do jazz no século XX. É reconhecido pelo seu brilhantismo técnico no saxofone, pelas inovações harmônicas (suas aplicações tri-tônicas são um marco no jazz com o disco Giant Steps), pela sua fase explorando as possibilidades do jazz modal (principalmente nos discos A Love Supreme e Crescent), e ao final de sua carreira com o flerte com o free jazz (como no disco Ascension).
Todos esses aspectos são importantes, mas gostaria de abordar uma faceta de Coltrane que não é muito comentada, sua capacidade de se expressar apenas com música instrumental, e de se conectar com temas de alto valor simbólico na sociedade.
Nas últimas décadas, com o jazz se transferindo principalmente para o ambiente acadêmico, é possível que a ligação que o jazz um dia teve com os temas presentes na sociedade tenham se enfraquecido. Ou será que o próprio jazz tenha se intelectualizado e por isso acabou por se distanciar das pessoas? Possivelmente, um pouco de tudo isso.
Mas o que eu gostaria de abordar é como John Coltrane era sensível ao que acontecia a seu redor e expressava sua visão de forma contundente. Indo além, ele conseguiu também ser pioneiro ao abordar questões espirituais e multi-culturais que se tornariam comuns nos anos que sucederam a sua morte.
O jazz, ao contrário da percepção comum que se tem aqui no Brasil, não é uma música de privilegiados. Pelo contrário, o jazz é a música dos negros excluídos do mainstream americano. As questões raciais sempre permearam a trajetória dos jazzistas.
Muitos artistas como Louis Armstrong, Charlie Parker, Miles Davis e Charles Mingus relatam viagens em que não podiam se hospedar em hotéis nas cidades onde se apresentavam, tendo que dormir em casas de pessoas negras pois hotéis não os aceitavam. A revolta com situações como essas gerou, nos anos 60, o Civil Rights Movement.
John Coltrane era muito sensível aos problemas raciais. Em 15 de setembro de 1963, o Ku Klux Klan atacou uma igreja na cidade de Birmingham – Alabama, com bombas, matando quatro meninas. Coltrane lançou no disco Live at Birdland, no mesmo ano, a composição Alabama, um lamento que sem nenhuma palavra, expressou a profunda dor que o incidente causou em todos, sendo quase uma versão instrumental do que falava Martin Luther King.
No final dos anos 60 e durante os 70, houve um grande interesse em elementos da cultura oriental, com jovens se juntando à comunidades como os Hare Krishna, pessoas aderindo a alimentação macrobiótica, recorrendo a tratamentos com acupuntura, etc.
Ainda em 1963 John Coltrane lançou no disco Impressions, a composição India, inspirada nos seus estudos de cultura oriental e as afinidades com o jazz modal que ele então praticava. Mas talvez o momento mais contundente de Coltrane foi o album lançado em 1965 chamado A Love Supreme, quando o artista apresenta uma obra conceitual sobre espiritualidade que transcendeu ao público cativo de jazz, sendo um dos discos mais vendidos da História do Jazz.
John Coltrane poderia ser apenas reverenciado por músicos pelos seus avanços no campo musical. Sua técnica estupenda levou o saxofone a outro patamar. Seus conhecimentos harmônicos eram um desafio para todos os improvisadores. No entanto, foi sua capacidade de se sensibilizar com o que acontecia no mundo que o transformou em um artista que ultrapassou as fronteiras do jazz e o tornou em uma personalidade musical universal. Existem inúmeras explicações e razões pelas quais o jazz perdeu a popularidade, mas por que será que o jazz perdeu a capacidade de emocionar as pessoas? O saxofonista Branford Marsalis disse uma vez:
“meu esforço é escrever músicas que tenham um significado emocional para mim. Porque eu acredito que se as músicas tiverem um significado emocional, isso vai se traduzir em um público maior que tem a capacidade de apreciar a música instrumental, porque muitas pessoas não gostam disso.”
Existem novos artistas do jazz como por exemplo, Kamasi Wasington, Brad Melhdau e Joshua Redman, que se esforçam para fazer uma música de alta qualidade e sofisticação e sem excessivos apelos comerciais. Musicalmente os resultados são ótimos, mas acredito que mais jazzistas deveriam procurar na própria sociedade a inspiração para a sua arte de forma a se tornarem mais relevantes – além da análise musical – para serem, a exemplo de Coltrane, artistas completos.
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Sobre o Autor
AC
Saxofonista com bacharelado em Performance na Berklee College of Music em Boston (1991) e mestrado em saxofone pela California Institute of the Arts (1993) e doutorado pela UNIRIO (2005) . Em Boston, ao se formar recebeu o prêmio Berklee Woodwind Performance Achievement Award. Entre os seus professores destacam-se Ernie Watts, George Garzone, Charlie Haden e Hal Crook. No Brasil já trabalhou com o Zimbo Trio, Alaíde Costa, Severino Araújo, Robertinho Silva, Paulinho Braga, Claudio Infante, Marcio Montarroyos, Adriano Giffoni, Victor Biglione, Nelson Faria, Nivaldo Ornellas,entre outros. Já gravou os albums Solari Jazz (1998), Brazilian Acid (2001), Soundscapes (2005), Naked Truth (2002), AC Jazz (2008), Atelier Jazz (2013), Ponte Aérea (2014) e AC Jazz Rio Blue (2015). Foi professor por cinco anos na Universidade Estácio de Sá lecionando Técnicas de Produção II e Introdução ao MIDI, Softwares de música e Workstations, Música Eletrônica e Síntese de Som, Produção Musical e Sonoplastia para Radio / TV e Harmonia. Atuou também professor substituto de saxofone da UNIRIO por dois anos, sendo responsável pelas aulas de saxofone e improvisação. A partir de 2011 assumiu como professor adjunto na Escola de Comunicação da UFRJ lecionando cadeiras ligadas à produção de audiovisual, sendo por uma ano Diretor de Graduação e Coordenador da Habilitação RTV. Atua também no Mestrado Profissional da Escola de Comunicação da UFRJ no programa de Mídias Criativas do qual foi um dos criadores e vice-coordenador por cinco anos. Em 2017, sua tese de doutorado foi lançada por duas editoras, uma na Europa e outra no Brasil, a CRV, com o título O Saxofone e a Improvisação Jazzística na Música Instrumental Brasileira.