Você recebe a dica de um edital para apresentações musicais subvencionadas e vem a dúvida: o que eu devo inscrever? O primeiro impulso, caso seja um intérprete de suas próprias músicas, é apresentar um projeto autoral, para poder fazer um showcase de suas composições, com uma estrutura profissional adequada, cachês, etc. Após ler com atenção as diretrizes do edital descobre que há uma preferencia por projetos com grande amplitude cultural, resgate de memória, releituras, etc. Neste momento você tem duas opções: apresentar seu projeto autoral porque é isso que você realmente quer fazer ou apresentar um projeto de resgate ou releitura (dependendo do viés do edital) para ter mais chances. Mas por quê isso acontece de forma tão recorrente?
Acredito que a gênese dessa situação remonta para o momento quando foram criadas as leis de incentivo à cultura. Afinal, arte é cultura mas nem toda a cultura é arte. Antes das leis, as administrações públicas tinham seus próprios projetos como Série Sala Funarte – um artista era selecionado para apresentações nas salas da instituição -, Projeto Pixinguinha – três artistas (sendo um jovem, um estabelecido e um patrono) excursionavam com um show montado pelo país, etc. Após as leis de incentivo, os projetos então são apresentados ao Ministério da Cultura que emite um certificado que habilita ao artista/produtor captar o montante aprovado pela agência governamental. É importante ressaltar que o dinheiro que pode ser captado vem, em parte ou integralmente, de uma renúncia fiscal, ou seja, é dinheiro público. O que a administração pública abriu mão foi da escolha de projetos, ou até da concepção dos projetos. E passou a escolha para a iniciativa privada.
É aqui que entra o debate sobre arte e cultura, pois se alguém fizer uma apresentação sobre as obras de Pixinguinha por exemplo, sem dúvida é cultura. Mas qual o valor artístico? Só assistindo podemos ter opinião. Porém, um projeto autoral é sempre artístico pois demanda um processo criativo e… riscos. Mas um projeto autoral não tem agregado a si, de saída, um valor cultural ainda. E aí tem um perigo, uma vez que nem sempre os empresários que investem em cultura podem/querem correr riscos pois podem ter o nome/marca de suas empresas associado a um projeto de valor cultural duvidoso. Ao investirem em nomes consagrados as empresas se protegem do risco de uma obra artística cujo mérito ainda está por ser comprovado. No nosso exemplo, Pixinguinha é genial sem dúvida. Então melhor apostar nele. Esse cenário criou uma verdadeira febre por tributos a nomes consagrados como forma de financiamento de apresentações artísticas.
Acrescente-se a isso a oferta gigantesca que temos atualmente de produtos musicais via Youtube e serviços de Streaming. Agora, até o público não quer correr o risco de ir assistir algo que ele não saiba de antemão se é bom ou não. Ficamos todos meio preguiçosos. E fazer um show atrelado a um nome conhecido – como um tributo – dá uma referência. Nada contra tributos que tenham realmente um viés artístico ou uma identificação grande da obra e linguagem de um artista com outro. Ravel orquestrou Mussorgsky, Branford Marsalis revisitou Coltrane, Joel nascimento releu a obra de Jacob do Bandolim, etc. Mas e para apresentação de obras autorais? Por que não fazemos editais para músicas autorais?
Sobre o Autor
AC
Saxofonista com bacharelado em Performance na Berklee College of Music em Boston (1991) e mestrado em saxofone pela California Institute of the Arts (1993) e doutorado pela UNIRIO (2005) . Em Boston, ao se formar recebeu o prêmio Berklee Woodwind Performance Achievement Award. Entre os seus professores destacam-se Ernie Watts, George Garzone, Charlie Haden e Hal Crook. No Brasil já trabalhou com o Zimbo Trio, Alaíde Costa, Severino Araújo, Robertinho Silva, Paulinho Braga, Claudio Infante, Marcio Montarroyos, Adriano Giffoni, Victor Biglione, Nelson Faria, Nivaldo Ornellas,entre outros. Já gravou os albums Solari Jazz (1998), Brazilian Acid (2001), Soundscapes (2005), Naked Truth (2002), AC Jazz (2008), Atelier Jazz (2013), Ponte Aérea (2014) e AC Jazz Rio Blue (2015). Foi professor por cinco anos na Universidade Estácio de Sá lecionando Técnicas de Produção II e Introdução ao MIDI, Softwares de música e Workstations, Música Eletrônica e Síntese de Som, Produção Musical e Sonoplastia para Radio / TV e Harmonia. Atuou também professor substituto de saxofone da UNIRIO por dois anos, sendo responsável pelas aulas de saxofone e improvisação. A partir de 2011 assumiu como professor adjunto na Escola de Comunicação da UFRJ lecionando cadeiras ligadas à produção de audiovisual, sendo por uma ano Diretor de Graduação e Coordenador da Habilitação RTV. Atua também no Mestrado Profissional da Escola de Comunicação da UFRJ no programa de Mídias Criativas do qual foi um dos criadores e vice-coordenador por cinco anos. Em 2017, sua tese de doutorado foi lançada por duas editoras, uma na Europa e outra no Brasil, a CRV, com o título O Saxofone e a Improvisação Jazzística na Música Instrumental Brasileira.