Resumo
Este artigo tem como objetivo o estudo do improviso da violonista e guitarrista Re Montanari na composição Di Menor, gravada pela Jazzmin’s Big Band, de autoria do compositor e violonista Guinga. Além da transcrição do improviso na íntegra, o texto é acompanhado de uma breve biografia da improvisadora, história do arranjo gravado pela banda, aspectos técnicos e estruturais de execução sob uma perspectiva didática de análise. Como objetivo, pretende-se desvendar os caminhos do fraseado de seu improviso através do estudo de algumas frases isoladas, resultantes numa “conversa” melódica estabelecida a partir do contraste entre “tensão” e “repouso”, dentro de uma harmonia não convencional para a prática da improvisação. O conteúdo é direcionado a pessoas interessadas em estruturação musical, improvisação, história da música instrumental brasileira, história das mulheres musicistas e educação musical.
Breve biografia de Re Montanari
Renata Montanari nasceu em São Paulo no dia 10 de setembro de 1962. De acordo com a descrição de seu próprio website, diversificou suas atividades profissionais entre as funções de “violonista e guitarrista brasileira, compositora e educadora”. Dotada de uma formação musical bastante sólida, estudou violão com Henrique Pinto e Paulo Porto Alegre e foi aluna do CLAM (Centro Livre de Aprendizagem Musical), reconhecida escola fundada pelo Zimbo Trio, aprimorando-se em jazz e música instrumental brasileira.
Ainda bastante jovem, foi a guitarrista do Kali, o primeiro grupo de música instrumental brasileiro (Brazilian jazz fusion, como a própria Montanari o definiu) a ser formado exclusivamente por mulheres, ainda na primeira metade da década de 1980. O grupo Kali lançou o seu primeiro e único álbum em 1985, pelo Som da Gente, um selo independente responsável pelo lançamento de discos importantes na história da música instrumental brasileira.
Como educadora foi professora de violão e harmonia na Emesp Tom Jobim (Escola de Música do Estado de São Paulo), onde também coordenou o departamento de Cordas Dedilhadas. Foi diretora e professora do espaço Solo Musical no bairro do Brooklin em São Paulo, onde também residiu. Já como instrumentista profissional, Re Montanari (nome artístico) participou da Banda Altas Horas da Rede Globo e fez parte da Avon Women Orquestra, se apresentando em diversas cidades do país acompanhando nomes bastante conhecidos no mundo da música como Nana Caymmi, Leila Pinheiro, Rita Lee, Milton Nascimento e etc. Participou também de musicais, como o premiadíssimo “Elza” em 2018 e 2019.
Re Montanari também se dedicou à composição, e ainda nos anos 1980 teve uma de suas músicas, “Quarto Minguante” gravada pelo guitarrista Hélio Delmiro no clássico álbum “Chama”. Em 2012 inicia a gravação do seu álbum solo “Entre o som e o silêncio”, segundo a compositora, “o resultado de um processo de criação e pesquisa da linguagem do violão brasileiro” (2020).
Em 2016, a convite da saxofonista Paula Valente e de sua antiga parceira musical, a pianista Lis de Carvalho, integrou, junto com a baixista Gê Cortez e a baterista Lilian Carmona, a primeira formação da “cozinha” da Jazzmin’s, a primeira big band formada só por mulheres do Brasil. A Jazzmin’s big band foi vencedora do prêmio Profissionais da Música 2019. Em 2020, tocaram no Montreux Jazz Festival, no Rio de Janeiro, e gravaram seu primeiro álbum “Quando Eu te Vejo“. Seu último projeto de trabalho foi o Grupo Dalma, um trio de violões bastante conhecido no cenário da música instrumental brasileira desde fins da década de 1970.
Re Montanari foi vítima de câncer e, aos 59 anos, em 2 de novembro de 2021, veio a falecer. O seu pioneirismo e exemplo de profissionalismo são inspirações para as mulheres musicistas, principalmente aquelas que se dedicam à música instrumental, um cenário ainda dominado pelo sexo masculino.
DI MENOR por JAZZMIN’S BIG BAND
Em 23 de março de 2019, a Jazzmin’s Big Band realizou uma apresentação na Sala São Paulo por iniciativa do TUCCA Música pela Cura, o primeiro de uma série de concertos internacionais realizados por esse projeto. A artista internacional convidada foi a clarinetista Anat Cohen que, por sua vez, possui uma íntima relação com a música brasileira. Para a ocasião da apresentação, foram encomendados ao maestro Tiago Costa alguns arranjos, entre eles o da música Di Menor, composta pelo violonista e compositor Guinga. Após a apresentação, havia a intenção de que o arranjo integrasse o repertório do primeiro disco da Jazzmin’s Big Band, “Quando eu te vejo”, fruto de um projeto contemplado pelo Proac. No entanto, o edital previa a predominância de músicas autorais e inéditas, logo o arranjo de Di menor saiu como single e não faz parte do álbum, estando disponível apenas em formato digital.
No concerto na Sala São Paulo, o tema (melodia) e os improvisos em Di menor foram executados pela instrumentista convidada Anat Cohen. Já na gravação em estúdio da Jazzmisn’s Big Band, a melodia do tema foi executada pela clarinetista do grupo com eventuais dobras de violão estipuladas pelo arranjo. Os improvisos foram divididos entre violão e trompete.
Na gravação do arranjo de Tiago Costa da música Di menor, Re Montanari usou um violão feito sob medida pelo luthier Saraiva com sistema de captação RMC, o que dispensa o uso de microfones externos. Com o corpo de cedro escavado, braço de ébano e tampo de pinho sueco, o que, segundo o violonista Rui Saleme, proporciona uma boa definição das notas, esse instrumento foi usado pela violonista por mais de trinta anos e está presente também em todas as músicas de seu álbum solo “Entre o som e o silêncio”, em algumas faixas do primeiro disco da Jazzmin’s Big Band, “Quando eu te vejo”, e nas últimas gravações ainda inéditas com o Grupo Dalma, o último trabalho de Re Montanari.
Aspectos estruturais no improviso em DI MENOR
Segundo seu esposo, “roadie” e parceiro musical, Rui Saleme, Re Montanari “se considerava uma musicista que tocava guitarra e violão”, mas nota-se uma preferência por este último nas suas composições. Montanari dividia-se quanto ao uso ou não de palheta nas performances ao violão. O improviso em Di Menor analisado no presente artigo foi executado com palheta.
Iniciando-se num momento de pausa logo após uma convenção bem marcada da big band, a melodia do improviso entra em anacruse. Renata executa uma frase em Re menor, saindo da tônica da escala e chegando diatonicamente na nota Mi sob harmonia do acorde Bm7b5, Si meio diminuto.
Devido à localização da nota Fa numa região não aguda do violão (quarta corda, longe de estar na ponta do acorde), foi possível repousar na nota Mi, sem o “choque” de segunda menor, de forma a soar uma alteração no acorde original com a inclusão da décima primeira como grau alto (Bm7b511) como mostra a distribuição de vozes na figura abaixo.
Na segunda frase do improviso também acontece outra finalização com nota que não pertence ao acorde. Ao executar uma frase com a escala menor harmônica sobre o grau II da cadência invertido (Em7b5/Bb), Renata finaliza a frase com a nota Sol no acorde tônica, na harmonia registrado como Dm13/A. Logo, notamos mais uma frase que se encerra na décima primeira do acorde ao início do improviso.
Uma possível construção do acorde Dm1311/A é feita no violão com o aproveitamento na corda solta La (o baixo) e dobrando a terça de forma a soar um intervalo de segunda maior entre a nota Fa na segunda corda e a nota Sol, a décima primeira do acorde, na primeira corda.
A harmonia da composição Di menor de Guinga possui uma predominância de acordes dissonantes derivados da cadência menor, que se apresentam como prolongamento ou preparação da própria cadência que resolve no acorde da tônica. Repare no exemplo sete o “longo” encadeamento feito antes da resolução em Re menor, sequência no final da parte A:
Para improvisar no trecho acima mencionado, Re Montanari usou a escala de La menor harmônica nos dois compassos Bm7b5 e E7, saindo em anacruse do compasso anterior a partir da nota Mi, o que gera o modo Mi Mixolídio b9. De forma não previsível, nos dois compassos seguintes harmonizados respectivamente por E7 e Gm6/Bb, a violonista usou Re menor harmônico, também a partir do quinto grau, La mixolídio b9. Logo, o acorde de E7, teoricamente enquadrado como pertencente à tonalidade de Lá menor, neste trecho foi usado como harmonia para uma frase em Re menor. A frase se sucede até o compasso seguinte onde o acorde é Gm6/Bb, o quarto grau menor de Re menor. No compasso seguinte, harmonizado por dois acordes A7#11 e Eb7#11, respectivamente, o V e o sub V, Re Montanari executa uma frase com apenas quatro notas que termina com a resolução da cadência na nota Fa, a terça do acorde tônica (Dm7).
O resultado de uma frase da cadência que prepara a dominante seguida de outra do próprio dominante, cuja intenção ainda se completa no compasso seguinte, gera uma forte expectativa de resolução no tom, totalmente de acordo com a intenção dissonante causada pela predominância de acordes dominantes da música.
O final do improviso é o momento de grande tensão harmônica e o momento mais denso do arranjo, onde o desafio para qualquer improvisador seria o de criar uma sequência de notas que se sustente ininterruptamente em uma sequência como os quatro últimos acordes antes do Dm7/A: Eb7#11 | % | Fmaj7#5/A | % | A9#11#5 | % | G9#11#5/A | % |. Iniciando-se em uma semicolcheia no compasso anterior, o trecho melódico sob o acorde de Eb711# foi desenvolvido a partir da escala Bb menor melódica, com inclusão da nota Mi natural (segunda semicolcheia do segundo tempo do segundo compasso), a nona bemol da tônica do acorde, o que reforça o seu caráter dissonante.
Duas semicolcheias antes de Fmaj7#5, Montanari executa um motivo melódico identificado pela sequência de notas Do, Do#, Do, Sib, La, Sib que é repetido uma terça maior acima por duas vezes: Mi, Fa, Mi, Re, Do#, Re, até as duas primeiras semicolcheias do acorde seguinte.
Segundo o que é sugerido a partir da análise melódica, pode tratar-se de um motivo criado a partir da escala Dominante- diminuta (Dom-dim), cujas notas surgem a partir da simetria de intervalos de semi-tom (st) / tom (T) / semi-tom (st) / tom (T) e etc, até alcançar a oitava da nota de partida ou tônica.
No acorde A9#11#5, a improvisadora faz uso da escala de tons inteiros saindo da nota Fa, num percurso diatônico descendente até alcançar a nota Sol, quando se inverte o sentido retornando ascendentemente à nota Fa, a nota de origem, e reiniciar o caminho de volta desta vez interrompido apenas pela rítmica que deixa de ser o grupo de quatro semicolcheias na nota Si para retomar à síncopa. A escala de tons inteiros, agora sob a rítmica sincopada no acorde de G9#11#5/A, se estende até a nota Mib, preparando melodicamente a resolução na tônica Re.
A sequência A9#11#5 | G9#11#5/A pode ter partido da ideia de criação de uma harmonia violonística, onde o existe a busca por uma sonoridade específica do violão, neste caso se valendo da quinta corda solta La como baixo, comum aos dois acordes. A notação é original da harmonia da partitura do arranjo escrito por Tiago Costa, mas poderia ter sido cifrada de outra forma como B#11/A e A7#11. O que importa para esta análise, é a possível influência das simetrias de deslocamento de um tom no braço do instrumento de um acorde para o outro, e da própria formação intervalar de ambos os acordes na escolha da escala de Tons Inteiros ou Hexafônica para a construção da frase no improviso.
Re Montanari também fez uso de ferramentas mais usuais para construção de seu fraseado movidos pela fluência de digitação no braço do violão, como é o caso do arpejo do acorde diminuto cuja simetria intervalar (sobreposição de terças menores) favorece o estabelecimento de padrões de desenho.
Em relação à construção rítmica das frases, nota-se a predominância de grupos rítmicos derivados do choro como a sincopa (semicolcheia-colcheia-semicolcheia) e o conjunto de quatro semicolcheias (semicolcheia-semicolcheia-semicolcheia-semicolcheia) que ocupam um tempo inteiro na fórmula 2/4, e as possíveis combinações de ligaduras e pausas e ponto de aumento em ambos, com alguns desses exemplos abaixo:
A maioria das frases se inicia na segunda ou quarta semicolcheia do tempo, como mostram dois exemplos abaixo:
Conclusão
Através da análise de algumas frases do improviso de Re Montanari, nota-se o domínio por parte da violonista de muitas ferramentas para improvisação, a começar pela aplicação de diferentes escalas, como menor natural, menor harmônica, menor melódica, escala dom-dim, escala hexafônica, arpejos e rítmica de acordo com a linguagem do choro proposta pela composição Di menor. Apesar da clareza de suas ideias de construção, o que pode servir como material didático para estudo de improvisação a partir de sua transcrição, as suas frases revelam certa preocupação com o estabelecimento de um discurso melódico e não apenas com as diretrizes da harmonia composta por Guinga que, por sua vez, não é muito convencional para a prática da improvisação.
Sobre o Autor
Gabi Gonzalez
Natural da cidade de São Paulo, Gabi Gonzalez é guitarrista e mestranda em música pela UNICAMP. Formada em guitarra pela antiga ULM "Tom Jobim" (atual EMESP), é pós-graduada em Educação Musical pela FIC e em Música Popular pela FACCAMP. Graduada e licenciada em História pela USP. Desde 2001 trabalha como guitarrista profissional tocando em diversos projetos de diferentes estilos como Jazz, Blues, Rock, Hip Hop e etc. Atualmente é guitarrista da Jazzmin’s Big Band. Influenciada pelo seu professor Olmir Stocker, começou a compor seus próprios temas instrumentais com forte influência de ritmos brasileiros. Seu primeiro disco autoral instrumental, Morro do Eixo, foi lançado em 2012 no Instrumental Sesc Brasil (Sesc Consolação) . Em 2017, gravou seu segundo disco Com Elas com o grupo feminino Elas Quarteto. É professora de guitarra e violão e pesquisadora na área de musicologia.