Ao lançar no ano passado a compilação World Spirituality Classics 1: The Ecstatic Music of Alice Coltrane Turiyasangitananda, o selo Luaka Bop jogou luz a uma fase pouco conhecida de Alice Coltrane. Quem se dedicou às obras da viúva de John Coltrane usualmente destaca obras como Universal Consciousness (1971) e Eternity (1976). O selo britânico, porém, explorou uma fase mais vocal e permitiu vislumbrar Alice à frente de órgãos e sintetizadores, levando o termo “espiritual”, intrínseco à sua obra, a planos inimagináveis.

A guinada artística de Alice Coltrane se deu após a morte do saxofonista, em 17 de julho de 1967. Ela tinha uma jornada musical no piano e, inclusive, havia tocado com John em discos como Live at Village Vanguard Again! (1966) e Expression (1967).

Mesmo assim, era pouco mencionado o vínculo artístico entre John e Alice. O primeiro álbum que trouxe essa “cumplicidade musical” à tona foi Cosmic Music (1968), disco póstumo que saiu quase um ano depois de sua morte. Alice no piano e John no sax enalteceram uma turbulência sonora que ajudariam a chacoalhar o free-jazz – com a colaboração de Pharoah Sanders (sax-tenor/flautim), Jimmy Harrison (baixo) e Rashied Ali (bateria).

Até então, Alice ainda não tinha lançado um álbum como bandleader. Isso porque ela passou por períodos complicados após a morte de John; não sentia fome, nem sono, e reclamava de constantes pesadelos. Para superar esse período, ela revelou, anos depois, que contou com o auxílio espiritual de Swami Satchidananda, líder religioso indiano que a fez entender a presença do “espírito santo em todos os lugares”.

A música, claro, seria crucial nesse processo de ‘cura’. Essa nova direção viria de uma deixa apontada por John Coltrane. É que pouco antes de morrer, o saxofonista decidiu comprar uma harpa, que demorou meses para ficar pronta – tanto que ele nem teve a oportunidade de vê-la ou tocá-la. Alguns anos depois, Alice disse que, se as janelas de sua casa ficavam abertas, uma brisa forte fazia com que as cordas da harpa zumbissem, como se uma força invisível estivesse dedilhando o instrumento.

Ela relutou para tocar a harpa – tanto que seu primeiro disco como líder, A Monastic Trio (1968), teria Alice no piano fazendo uma homenagem à música do marido.

Aos poucos ela foi trazendo a harpa para sua música: em Huntington Asaram Monastery (1969), já arriscaria algumas notas em pelo menos dois temas.

Alice Coltrane
Alice Coltrane ao piano. Foto: De Meylan, CC BY-SA 2.0, via Wikimedia Commons

O primeiro disco em que Alice põe a harpa como destaque é Journey in Satchidananda (1970) que, não por acaso, faz menção ao guru indiano que lhe ajudou no processo de renovação espiritual. Mas seria com Universal Consciousness (1971) que a multi-instrumentista encontraria uma linguagem própria na harpa em meio a fricções em percussões, bateria, violinos e até mesmo tambura, um instrumento associado à música carnática da Índia.

Na época, parte da crítica ficou bitolada em vincular Alice a John Coltrane, afirmando que ela estava seguindo um caminho proposto por ele. Na verdade, não foi bem assim. Alice Coltrane já tinha provado sua excelência no piano nos grupos com o saxofonista. Explorar novos instrumentos, como órgão e harpa, deu a ela uma nova ciência de base e arranjos, abrindo alas para uma jornada própria que começaria pra valer a partir do final dos anos 1960.

Algumas décadas depois, após a morte de um de seus filhos, John Jr., Alice compraria um ashram, um terreno gigante que servia como comunidade espiritual sem restrição a dogmas. Encerrados os contratos com a Impulse! e a Warner, Alice gravaria dezenas de tapes explorando mais vocais, chants, percussões e sintetizadores, levando o jazz de encontro à psicodelia, gospel, spirituals. The Ecstatic Music of Alice Coltrane compila quatro álbuns dessa fase até então pouco conhecida: Turiya Sings (1982), Divine Songs (1987), Infinite Chants (1990) e Glorious Chants (1995). Pelo que parece, isso é só o começo. Tem material de sobra de Alice Coltrane para convencer, de uma vez por todas, que ela é tão ímpar quanto John Coltrane.

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Tiago Ferreira
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