Beth Carvalho não é considerada a “Madrinha do Samba” apenas por abrilhantar canções de Nelson Cavaquinho, Cartola, Almir Guineto, Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila e muitos outros.
Sua representatividade permanecia intacta em mais de 50 anos de carreira, seja como “facilitadora” do gênero (Zeca Pagodinho que o diga) ou como porta-voz de uma das maiores forças do samba: seu poder de identificação com o cidadão.
O editor do Floga-se, Fernando Augusto Lopes, usa o termo ‘chão de fábrica’ para descrevê-la, algo que faz completo sentido ao observar suas músicas e seu posicionamento enquanto baluarte de um gênero que já foi o suprassumo da nossa música popular.
Como intérprete, Beth Carvalho compreendia o significado das letras, mas não soava dramática. Era uma voz que trazia a sabedoria do empirismo, que aproximava as massas por uma característica que transcende a técnica vocal.
Beth, que já cantou samba de morro, samba-canção, pagode e samba enredo, era uma cantora do povo. E é exatamente esse aspecto que quero enaltecer na seleção de 5 das suas músicas mais representativas (tem mais, lógico!).
Descanse em paz, Rainha!
“Andança” (1968)
Com uma pegada meio Milton Nascimento, essa música foi escrita por Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós na casa da própria Beth, para inscrevê-la no III Festival Internacional da Canção. Beth interpretou a música com os Golden Boys e conseguiu um 3º lugar.
Embora ela não tenha sido gravada com o intuito de ser um samba, tornou-se um hit obrigatório em seu repertório: um acalanto amoroso que ainda paira em nosso imaginário quando pensamos naquele bom e velho samba-canção.
“Olho por Olho” (1977)
Clássico de um de seus melhores discos, Nos Botequins da Vida, “Olho por Olho”, de Daniel Santos e Zé do Maranhão, falava de direitos iguais entre homens e mulheres, mostrando a visão de Beth para o que se convencionou chamar ‘mulher de malandro’.
Trata-se de uma espécie de manifesto em busca da igualdade, com a seguinte mensagem oculta: mulheres, vocês não precisam depender de homem algum, não precisam estar sujeitas à violência e devem buscar a própria felicidade. Uma ode não declarada à independência.
“Saco de Feijão”
Mais uma de Nos Botequins da Vida, um disco que vale a pena ouvir de cabo a rabo, “Saco de Feijão” permanece atual porque fala sobre como a desvalorização do dinheiro afeta os mais pobres.
A composição de Francisco Santana (da Velha Guarda da Portela) era uma crítica à condução da política econômica na era mais obscura da Ditadura Militar – e antecipou a época da hiperinflação, que assombraria a população na década seguinte.
Quando alguém perguntar para você o que significa inflação, mostre essa música: é uma lição à parte.
“Vou Festejar” (1978)
O grande hit do Carnaval de 1979 marcou uma ruptura no samba: o surgimento do bloco Cacique do Ramos, que nos brindou com o Fundo de Quintal, um dos nomes mais expressivos do pagode a partir de então.
Beth Carvalho dá uma vivacidade única à música. Ela doma a festa, envolve todo mundo e inspira muitos risos. No livro A Canção no Tempo, os autores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello descrevem “Vou Festejar” como “sem a menor sombra de dúvida, a peça abre-alas da moda do pagode que dominaria a produção fonográfica brasileira nos anos seguintes”.
“Virada” (1981)
E, por fim, uma música que fala sobre dinheiro, trabalho, mas, principalmente, sobre ‘dar o troco’ – que pode ser interpretado como esforço, revolta ou indignação. É um samba-de-quadra poderoso, com força para engajar mesmo quem esteja ouvindo pela primeira vez. Sem falar no quanto é atual.
Nota interessante sobre esta música, composta por Noca da Portela e seu filho Gilpert: ela só passou pela censura da Ditadura porque o oficial se dizia fã de Martinho da Vila e gostava de samba. A crítica social de “Virada” era tão contagiante, que tornou-se inevitável hino da campanha pelas ‘diretas já’.
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Sobre o Autor
Tiago Ferreira
Editor responsável do Na Mira do Groove, fã de jazz, hip hop, samba, rock, enfim, música urbana em geral.