“Disco perdido” de Marvin Gaye é lembrete de sua genialidade

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“Quando você está no topo, não tem mais nenhum lugar para onde ir, a não ser ladeira abaixo”. Foram essas palavras que Marvin Gaye disse ao biógrafo David Ritz e, ouvindo o álbum inédito que saiu no começo de abril, You’re the Man, dá pra dizer que o soulman estava em uma fase de questionamento.

You’re the Man ficou guardado por mais de quatro décadas porque a Motown não queria saber de lançá-lo.

O disco deveria ser o sucessor de What’s Going On (1971), um de seus discos mais importantes. E, para entender o motivo do disco ficar engavetado por tanto tempo, é preciso rememorar a discussão do compositor com o dono da Motown, Berry Gordy.

“Pior merda que já escutei”

Nos anos 1960, a Motown havia se consolidado como a maior gravadora de música negra de seu tempo. O segredo era investir em singles com arranjos grandiosos, canções com melodias cativantes e composições de fácil identificação – tanto para o público negro quanto para o público branco, que era quem realmente comprava os LPs.

Marvin Gaye já tinha relativo sucesso, principalmente com singles ao lado de Tammi Terrell, sua principal parceira musical. Sua morte precoce, em março de 1970, aos 24 anos (por um tumor cerebral), o deixou desolado.

No ano seguinte, ele decidiu que devia dar uma repaginada na sua carreira musical. Então, ele apresentou a ideia que tinha de “What’s Going On”. Vale lembrar que, diferentemente de outros músicos do casting, Marvin tinha maior poder de barganha dentro da gravadora: afinal, era casado com a irmã mais velha do patrão, Anna Gordy, desde 1963 (ela também uma empresária musical).

Quando Berry ouviu a música, não hesitou em disparar: “é a pior merda que já escutei”. Teimoso, Marvin Gaye disse que não só queria insistir no single, como já tinha um disco inteiro gravado.

Ao ouvir “Mercy Mercy Me (The Ecology)”, o chefão disse que ele não entendia nada de ecologia e que toda abordagem de consciência social não se adequava à proposta da gravadora.

Ainda assim, Marvin fez um desafio: e se lançasse o single, para ver como sairia? Berry aceitou e, algumas semanas depois, teve que engolir o fato de vê-lo no topo das paradas de R&B.

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Mesmo a contragosto, deu carta branca para que What’s Going On fosse lançado, e alterasse de uma vez a lógica da soul-music. Foi graças a Marvin Gaye que Stevie Wonder passou a lançar discos inspiradíssimos a partir de Music of My Mind (1972) e muitos outros artistas ajudaram a levar a soul-music, antes focada na propagação de singles, a um conceito mais complexo, na onda do que acontecia com o rock na era pós-Beatles.

Marvin Gaye politizado

Lançado em data próxima ao dia em que Marvin Gaye faria 80 anos se estivesse vivo, You’re the Man deveria ser a sequência do aclamado What’s Going On.

Acontece que, mesmo após atingir quase 1 milhão de cópias vendidas na época, Berry não queria saber de seus artistas cantando sobre política.

Quando soube que Marvin Gaye tinha gravado uma música sobre um soldado do Vietnã que queria passar o Natal em casa (“I Want to Come Home For Christmas”), movimentou-se para que esse novo “projeto” não vingasse: pediu para que tirasse das rádios e fez de tudo para que o disco não saísse.

Pesou na decisão de Berry o fato da faixa-título atacar diretamente as campanhas presidenciais dos Estados Unidos de 1972.

Não queremos mais ouvir mentiras/ Sobre como vocês planejaram seus compromissos/ Queremos que o dólar valorize/ E o emprego aumente.

Para o disco, Gaye contou com a colaboração de alguns compositores da Motown, como Gene Page, Hal Davis, Gloria Jones e Fonce Mizell, para nomear alguns. Essas canções tiveram a produção retrabalhada nos dias atuais por Salaam Remi, o conhecido produtor musical de Amy Winehouse. 

Para seguir adiante, na época, Marvin Gaye preferiu engavetar esse material, mas o que se tem é um artista em seu auge enquanto cantor (não ainda como performer, algo que aconteceria um pouco depois). 

Músicas como “The World is Rated X” e “My Last Chance” são algumas que podem ser comparáveis aos melhores trabalhos do cantor. Vale a pena captar o flerte de sua música com a psicodelia (“Christmas in the City”) e relembrar como ele se dava tão bem com o gospel em “You Are That Special One”.

Marvin Gaye não precisa de mais nenhum testamento de sua genialidade, mas You’re the Man surge como lembrete de impacto do quanto a sua música permanece emocionante, não importa quanto tempo passe.

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Sobre o Autor

Tiago-Ferreira
Tiago Ferreira
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Editor responsável do Na Mira do Groove, fã de jazz, hip hop, samba, rock, enfim, música urbana em geral.