Antônio Neves: tudo em família

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Foto: Lucas Vaz

“Quando eu nasci, foi como se meu pai pensasse: ‘Eu quero um baterista’. Ele foi essencial para a minha formação musical, ele me mostrou que ser músico era possível, que eu podia fazer isso.” Antônio Neves, filho do ilustre saxofonista Eduardo Neves, elogia o pai com frequência durante nossa ligação de duas horas pelo Skype. “Meu pai é meu ídolo”, confessa Neves, rindo com um sorriso radiante. “Eu amo meu pai!”

Apressadamente, mas com sinceridade, ele acrescenta: “Eu amo minha mãe! Eu amo todo mundo!”

O festejado baterista e saxofonista, ungido enfant terrible da nova geração carioca por sua gravadora Far Out Recordings, é efusivo ao falar a respeito do impacto de sua família em sua atual posição como desbravador do jazz brasileiro.

Os detalhes da brilhante carreira de seu pai pertencem à história da música popular brasileira. A carreira dele decolou quando trabalhava com Luiz Melodia e Tim Maia no final dos anos 80, antes de uma colaboração de treze anos com Zeca Pagodinho, além de tocar com Hermeto Pascoal, Milton Nascimento, Joyce Moreno, Ed Motta e Gilberto Gil – entre muitos outros. Mas Antônio também enfatiza a musicalidade do resto de sua família.

“Minha mãe é pintora, mas ela ama música também. Ela colocava discos de vinil de Milton Nascimento em casa. E meu avô, que também era pintor, tocava música clássica. Também tenho um tio que toca cavaquinho. Então, durante meu crescimento, a música esteve na minha vida o tempo todo. Quando me inscrevi para a universidade, escolhi química industrial e eles reagiram… ‘não, não, não! Você precisa fazer música – seja baterista!”

Conversamos antes do lançamento do tão aguardado segundo álbum de Neves, A Pegada Agora É Essa, pelo selo britânico Far Out Recordings. Mas, durante grande parte de nossa conversa inicial, Neves olha para o passado, e não para o futuro, deliciando-se com histórias de uma infância notável.

“Por causa do meu pai, crescemos ouvindo todos os dias grandes saxofonistas como Joshua Redman, John Coltrane, Branford Marsalis, Pixinguinha e Kenny Garrett… Eu amo esse cara, Kenny Garrett. Costumava ouvir a mesma faixa todos os dias: ‘Sing A Song of Song’. E, quando eu tinha uns seis ou sete anos, eu cantava seus solos: bahpahdahpahdah!” Neves começa a solfejar descontroladamente, antes de uma risada brotar de seu sorriso largo, interrompendo-o. “Mas eu sempre estarei atento aos bateristas”, ele enfatiza a penúltima sílaba (em inglês). “Drum, drum, drum, drum: Elvin Jones com Coltrane, Brian Blade ou Jeff Tian Watts com outros caras. E eu pensava, ‘uau cara, eu gosto dessa liberdade e desse ritmo – eu quero fazer isso.”

Depois de anos pedindo, Neves finalmente conseguiu uma bateria quando completou onze anos de idade. Nos dez anos seguintes, ele e Neves Pai tocaram por várias horas ao dia. Seu pai era um tutor durão?

“Ele não era um general (mas dizia) ‘esta parte não está tão boa – você precisa praticar mais o pé direito’. Ele ia embora e eu praticava antes que ele voltasse para continuar. Era coisa séria, sabe.”

“Minha irmã mais velha estava enlouquecendo, de tanto que eu praticava bateria todos os dias. Era alto. Ela ficava assim…” Neves revira os olhos, olhando agressivamente, “filho da puta”. Ele começa a rir. 

“Onde eu morava, no prédio, nós tínhamos tantos problemas lá, cara. As pessoas diziam ‘Vou jogar merda algum dia!’ E eu tinha treze anos, tipo ‘foda-se’. E como ovos e merda [foram jogados em nossas janelas].”

‎Para alívio dos vizinhos, Neves logo começou a levar sua bateria estrondosa para fora de casa – primeiro, ao lado de seu pai em noites de jam na tenra idade de doze anos.‎

“Lembro-me da primeira vez que toquei em uma jam session“, lembra Neves. “Meu pai me levou ao clube Modern Sounds, onde (o saxofonista francês) Idriss Boudrioua tocava todas as terças-feiras. Na primeira vez que ia tocar, fugi e me escondi. Mas então voltamos outro dia e eu toquei. Eu estava um pouco nervoso, mas os músicos de lá eram mais velhos e muito legais”.

Mais velhos, e veteranos em seu ofício, os músicos com os quais o prodígio de 12 anos aprendeu eram os pilares do jazz e do samba carioca. Neves se lembra de ter substituído o baterista Pascoal Meirelles, que deixara a banda de Paulo Moura para tocar com nomes como Tenório Jr., Ivan Lins, Elis Regina e Wilson Simonal. Ele também se lembra de ter tocado com o baixista de samba e bossa nova Sérgio Barroso, integrante fixo do trio de Dom Salvador, além de Os Catedráticos, Rio 65, trio 3D de Antônio Adolfo, bandas dos anos 60 de Nara Leão e Roberto Menescal e o grupo dos anos 70 de Elizete Cardoso. Esses músicos não eram amadores de jam-night. Com a perspectiva de tais colaborações, até mesmo um músico experiente iria salivar.

Ele sabia, naquela idade, como isso era especial?‎

‎”Eu acho que eu estava tão nervoso sobre tocar bem que eu não pensei sobre isso. Lembro-me que eu me sentia como “cara, eu realmente preciso ficar no ritmo”. Lembro-me de tocar “All The Things You Are” e precisava me concentrar, sabe. Mas eu não pensei ‘oh, estes são músicos experientes.’ A primeira vez que meu pai tocou em uma jam, quando ele era mais jovem, foi com Idriss, também. Então Idriss é como um tio. Ele é da família. Meu pai é músico, conheço todo mundo”.

“Eu sou filho do Eduardo. Então, para mim, é como se estivéssemos todos em família.”

Para Antônio, esses foram momentos mágicos: “Íamos juntos, eu e meu pai substituíamos outros músicos, normalmente tocando samba de gafieira por três sets – bem depois da meia-noite. Eu adorava essa energia! Quando voltávamos para casa, o sol já estava nascendo. Nós largávamos os instrumentos e íamos para a praia… tenho boas lembranças dessa época”.

Na adolescência, Neves conheceu outros músicos mais jovens – mais especificamente, a clarinetista Joana Queiroz que, no último ano, chamou a atenção com sua fascinante obra-prima Tempo sem Tempo. “Ela fez parte de uma banda chamada Orquestra Republicana com vários artistas como a cantora Teresa Cristina, Alfredo Del-Penho e Marcelo Bernardes (saxofonista de Chico Buarque). Ela é um pouco mais velha do que eu, mas era a mais jovem da banda.”

“Comecei a tocar com eles na Lapa e depois vieram mais shows. Aí, toquei com o arranjador, professor e trombonista Vittor Santos, e as portas começaram a se abrir mais: toquei com Leo Gandelman depois que ele me viu tocando com Vittor – e Hamilton De Holanda também.”

Holanda, Gandelman e Quieroz participam de A Pegada Agora É Essa, de Neves. Mas é a menção a Vittor Santos que me deixa com os ouvidos em pé. Na verdade, com Vittor, veio a primeira menção de Neves ao trombone – o instrumento com o qual posa na capa de seu novo álbum. Quando Neves começou a tocar trombone?

“Todo mundo pensa que toco trombone porque ‘ah, seu pai é saxofonista’, mas tocar trombone veio muito tarde – até depois do Vittor Santos. Comecei a estudar trombone quando tinha 21 anos, na faculdade de música. Foi uma aula opcional. Eu não sabia nada sobre trombone, mas vi os alunos de trombone na minha escola e pensei, ‘cara, talvez não seja tão difícil – eu quero tentar’. É um instrumento simples: apenas ‘fuhm-fuhm’.” Neves simula um slide de trombone. “E é isso… Além disso, um trombone não é muito caro, ao contrário de um trompete ou saxofone. Então, comprei um e meu professor logo disse que eu tinha sorte, pois eu parecia ter facilidade para emitir um bom som.”

“De repente, me vi fazendo shows com o trombone, tocando com bandas de reggae como o Natiruts – a maior banda de reggae do Brasil. Cheguei a um ponto em que eu fazia três shows no trombone e depois três como baterista… Quando criança, eu nunca pensei em um dia ser trombonista – eu queria ser baterista, queria tocar com o Joshua Redman…”

Menciono a incongruência entre a arte do álbum (abaixo) e sua paixão pela bateria, não pelo trombone.

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Capa do álbum A Pegada Agora é Essa

“Pra mim, isso é maluquice – o que estou fazendo (na capa do disco) com um trombone na mão? (A artista multidisciplinar) Ana Frango Elétrico fez a arte do álbum e me disse para levar o trombone (para a sessão de fotos). E eu pensei, ok, é mais fácil levar do que a bateria… Eu nunca imaginei que as pessoas me veriam como um trombonista, mas a vida me levou para esse caminho.”

Explorando seu recém descoberto talento com o trombone, em 2017, Neves liderou uma banda que contou com Joana Queiroz e o seu pai Eduardo. Ao lado deles, Neves gravou seu primeiro álbum Pa7, empunhando o instrumento de sopro e confiando as baquetas ao baterista Pedro Dantas. O resultado foi um álbum “intimista” de “melodias melancólicas”, feito entre amigos e familiares – única maneira que Neves conhece. No mesmo ano, Neves passou um tempo tocando com outros amigos – Leo Gandelman, Moreno Veloso e Kassin. Mas, o mais impressionante, ele também participou da banda de Elza Soares tocando bateria na gravação do álbum ao vivo Elza Canta E Chora Lupi.

“Não tenho palavras para explicar como isso foi importante para a minha vida e crescimento”, enfatiza Neves. “Quando eu tinha 12 anos, meu pai tocava com Elza e eu me lembro de ter ido aos bastidores e ela me dizer: ‘um dia você vai tocar comigo!’ E eu fiquei assim… poooorra, cara!” Neves estica o palavrão até quase ficar sem fôlego. “Ela é incrível, incrível. A melhor cantora de todos os tempos.”

“A cada apresentação ela parava o show e contava a história: ‘ei, esse cara eu conheci quando tinha 12 anos…’ E eu saía da bateria e ia beijá-la e todo mundo falava oooooooh!” Braços estendidos, Neves imita o barulho da multidão, sem conseguir esconder a alegria. “Para mim, é uma das coisas mais importantes que fiz.”

No ano seguinte, algo igualmente importante aconteceu. Neves iniciou a mais significativa de todas as suas amizades musicais, com Ana Frango Elétrico. Tocando com Ana, Neves aprendeu maiores responsabilidades musicais – e liberdade musical. Com Ana, Neves tocou bateria e trombone; ele também tocou teclado, trompete e fez os arranjos do álbum de 2019 indicado ao Grammy, Little Electric Chicken Heart. Pergunto a Neves sobre a parceria deles, que mais recentemente resultou na participação de Ana Frango Elétrico no single de Neves “Luz Negra”.

“Muito antes de ela gravar (Little Electric Chicken Heart), eu a vi em um videoteaser, convocando as pessoas para irem ao seu show. E eu pensei ‘quem é essa garota maluca?’ A maneira como ela falava e se expressava me deixou curioso e fui a um de seus shows, onde pensei ‘uau, ela tem alguma coisa, ela tem uma identidade.”

“Ela primeiro me chamou para gravar algumas faixas do primeiro disco dela (Mormaço Queima) e a gente ficou como irmã e irmão, brincando e nos divertindo o tempo todo. Acho que é porque somos sagitarianos! Quando conversamos, é fácil. Temos algumas coisas em comum na cabeça”, ele ri. “E temos o mesmo senso de humor – como o humor rabugento. Mais tarde, ela me pediu para fazer os arranjos para Little Electric Chicken Heart – eu nunca poderia imaginar que o álbum seria indicado ao Grammy. Mas ela é uma artista completa – pintora também. Eu amo suas melodias e harmonias. Eles são muito originais. E a voz dela é tão original para mim.”

Seguimos em direção ao novo álbum de Neves, e ele explica que a voz original de seu álbum encontra-se entre seu trombone e o clarone de Queiroz. A perfeição com que os dois instrumentos se fundem é um dos prazeres de A Pegada. Neves concorda.

“Eu tinha ouvido muito o clarinetista Jimmy Giuffre. Eu amo, amo, amo, amo esse cara – cada álbum. E ele tem um álbum com o trombonista Bob Brookmeyer, onde a combinação do trombone com o clarinete soa incrível. Quando eu ouvi, me fez pensar ‘uau, se eu fizer isso com o clarinete baixo…”

“Quando eu era criança, tudo era jazz, jazz, jazz, então eu queria fazer esse tipo de som. E essa é realmente a principal diferença (entre Pa7 e A Pegada). Escolhi instrumentos acústicos: piano acústico e baixo, com trombone e o clarone de Joana Queiroz.”

Existem outras diferenças entre Pa7 e A Pegada Agora É Essa? “A intenção de A Pegada é mais energética, tem mais humor, é mais QUENTE!”

A faixa-título, lançada no final de 2020, corrobora essas intenções. Ao analisar a obra, usei os adjetivos “quebra-cabeças”, “inquieto”, “urgente”, “animado” – tudo dentro de duas frases. Inegavelmente, o novo álbum de Neves tem energia de sobra. E Antônio Neves também, quando fala sobre ele.

“A Pegada Agora É Essa é como AAAAGH!” O trombonista e baterista balança as mãos freneticamente. Com os olhos esbugalhados, ele começa a gritar: “Vamos lá, cara! Vamos tocar o que quisermos! Vamos fazer uma festa!”

A Pegada Agora É Essa é, sim, uma festa. Menos um relato íntimo de seu músico autoral, mais um olho nas relações de Antônio Neves com seus companheiros músicos, ao longo das oito animadas composições, sete apresentam pelo menos um amigo próximo ou membro da família com quem Neves compartilha o papel principal. Como nas melhores festas, em A Pegada, Neves está rodeado dos mais próximos e queridos.

“É muito, muito, muito importante para mim fazer música com meus amigos”, enfatiza Neves, explicando o processo de pensamento por trás da construção de seu álbum em torno das faixas. “Quando vi o documentário Quincy Jones (Quincy, 2018, TriBeCa Productions, referenciado na biografia de Neves no site da Far Out Recordings), aprendi que tudo na sua vida depende de dizer sim. Você precisa dizer sim. A maneira como ele chama os músicos que ama e como sempre está trabalhando com amigos, as pessoas que ama… Eu fiz o mesmo. Liguei para meus maiores amigos e as pessoas que amo e que me amam. Essa era a ideia.”

“Pensei: Quem vou chamar para o piano acústico? Eduardo Farias, que tocou comigo e com Leo Gandelman. E então, pensei, no Fender Rhodes, quero chamar o Luiz Otávio, precisa ser o Luiz Otávio. E ele disse ‘claro cara, vamos lá!’ E eu fico assim…” Neves faz um sinal de oração. “É muito importante para mim que todos os músicos com quem escolhi fazer este álbum tenham dito sim. Estou muito feliz por todos dizerem sim para mim.”

Transparecendo até mesmo pela tela do laptop, capturo um vislumbre da energia contagiante que convenceu vinte e quatro músicos excepcionais a se envolverem com a ideia de Neves. É uma energia impulsionada pela uma atitude resumida no título de seu álbum: A Pegada Agora É Essa.

“É uma frase que aprendi sozinho. Eu digo isso para todos. Quer dizer… Assim, nós estamos em um bar e você me dá três cervejas e eu fico tipo, ”o sempre demonstrativo Neves arregala os olhos, fingindo choque. “E você pensa, ‘sim cara! A pegada agora é essa! Vamos lá!’ É como meu bordão.”

Foi a energia encapsulada neste bordão que levou a realeza da MPB Alice Caymmi a gravar os vocais para o rearranjo de Neves da composição do avô de Alice “Noite De Temporal” – um número emocionante e taciturno que aparece no início do álbum. “O arranjo da composição de Dorival, fiz para um pequeno show – apenas bateria, guitarra e baixo”, conta Neves, “e os músicos acharam que era um bom arranjo e que eu deveria gravá-lo. Imediatamente pensei ‘cara, vou ligar para Alice porque ela precisa cantar isso!’ Ela é minha amiga, gosto dela.

“Ela veio ao estúdio, ouviu a música e eu expliquei. ‘Acho que você precisa começar aqui, fazer uma improvisação aqui’, e ela disse ‘ok’. Eu juro, cara”. Neves passa a mão por um braço arrepiado, “em uma tomada ela cantou tudo. E eu estava lá com a partitura, assim…” Ele pega uma folha de papel e aperta com força, tremendo e olhando, pasmo. “Eu estava chorando e pensando… porra, cara! Como estou agora. Demorou 30 minutos no estúdio do começo ao fim e estava pronto. Lembro-me do engenheiro de som olhando para mim como quem diz ‘Ela é incrível!'”

Noite De Temporal flui, através de uma belíssima execução de piano, para outro cover que apresenta uma destacada artista e amiga: desta vez, “Luz Negra” de Nelson Cavaquinho, cantada por Ana Frango Elétrico. Por que ele e Ana escolheram fazer um cover dessa música?

“Minha família está sempre ouvindo samba. E meu pai dá show no qual só toca Nelson Cavaquinho. E eu amo as composições de Nelson porque há algo em suas melodias e harmonias que está perto do jazz. Luz Negra é a minha favorita, e sua letra é muito triste. Nelson diz, ‘Sim, minha música é triste. Sim, todo mundo diz que minha música é triste, mas eu gosto de tocá-la com meus amigos, então a tristeza só pertence à música’. E eu acho que eu e Ana também temos músicas tristes, mas na nossa amizade somos brincalhões. Então é por isso que funciona.”

Entre a lista de faixas, há um cover que fica incongruente entre os títulos em português ao redor: “Summertime” de Gershwin. É o único título do álbum que não é seguido, entre parênteses, pela abreviatura “feat.” E quando eu pergunto por que, eu sou recebido com risadas incontidas.

“Eu testei alguns cantores! Mas fazer um cantor cantar em inglês foi um problema. Foi um problema para mim também. Mas a letra, eu meio que a retiro. Eu apenas canto qualquer coisa como – ”Neves começa a tocar um verso de sílabas sem sentido para a famosa melodia. “Porque, no Brasil, há muita coisa em inglês, mas ninguém sabe o que significa! Todo mundo canta o que quer. E então, achei que seria interessante – uma piada – brincar com isso, com a forma como os brasileiros veem a música em inglês.”

O resultado é certamente divertido. Embora as palavras estejam erradas, a estilosa performance flui com convicção, e o arranjo psych-soul de Neves, com o cintilante Rhodes caminhando sob os licks distorcidos de guitarra de Gus Levy e o clarone descontraído de Joana Queiroz, tornam cool o sóbrio standard de jazz – talvez pela primeira vez desde Herbie Hancock e Joni Mitchell.

O humor prevalece em A Pegada Agora É Essa (This Sway Now): da abertura “Simba”, que apresenta a velha governanta do avô de Neves gritando com Neves e seus companheiros bêbados, até o fechamento do álbum “Jongo No Feudo”, que termina com as risadas do grupo. 

Antônio Neves tenta explicar por que valoriza tanto o humor na música: “A mensagem é: não se leve tão a sério. Acho que todo mundo leva tantas coisas a sério, não sei. Gosto de fazer algo profundo, mas o que é profundo? Tudo é a mesma merda – eu não sei, eu sou desencanado.” Ele se inclina para trás, exalando em um sorriso. “Eu sou desencanado. Eu não fico… ‘Eu preciso fazer algo original e bonito …’ Eu apenas faço!”

Pergunto a Neves como ele se sente sobre seu álbum ter sido escolhido pela Far Out Recordings – os principais fornecedores da música brasileira fora do Brasil – e ele fica sério.

“Bem, meu produtor Santiago fez contato com Joe Davis (fundador da Far Out Recordings), Joe gostou muito e eu achei isso incrível. Aqui no Brasil, a música instrumental não é tão publicada, há muitos problemas – a educação musical não é tão boa. Os políticos não pensam nos mais pobres que precisam de incentivo. E, no final das contas, isso contribui para que as pessoas não se importem com a cultura. Em outros países, as crianças aprendem música na escola – todos têm acesso para tocar clarinete, ou baixo se você quiser. Quer tocar bateria? Você vai tocar bateria … As pessoas não se importam com isso aqui (no Brasil).”

Neves parece abatido, suspirando, ele confessa: “É muito difícil trabalhar com música instrumental aqui. Temos agora o pianista Amaro Freitas (que lançou dois álbuns pela Far Out Recordings, em 2016 e 2018). Mas acho que precisamos de mais Amaros! Precisamos de mais músicos para inspirar as pessoas a ver essa música de uma maneira diferente.”

Poucos dias depois, conversamos novamente, e Neves quer esclarecer este último ponto – para terminar com uma observação adequadamente alegre.

“Talvez eu estivesse errado (sobre precisar de mais músicos como Amaro Freitas). É mais um problema político, porque temos muitos Amaros aqui. Temos tantos músicos excelentes. Mas eles não chamam a atenção, sem publicidade, incentivo. Poucas pessoas ouvem essas coisas…” Abordando esse problema, Neves compilou recentemente uma playlist dos talentos brasileiros emergentes para o Spotify da Far Out. “Temos os músicos. Mas é um problema político”, frisa Neves. Seu sorriso familiar retorna, mais largo do que nunca. “Estamos fodidos”, ele anuncia, incapaz de dizer isso com uma cara séria. “Essa é a verdade. Nós estamos tão, tão, tão ruins agora, politicamente. E com o coronavírus todos estão em casa e todos que iriam trabalhar nos bastidores e nos shows, e todos os músicos… Não temos nada.”

“Agora estou muito ansioso e animado para ver este álbum ser lançado. Estou muito, muito feliz por ter gravado algumas coisas com meus melhores amigos e os melhores músicos, tudo no mesmo álbum.”

Apesar da crise atual, a positividade e o calor de Neves persistem. E se torna contagiante quando começamos a falar sobre o futuro. Ele me conta com entusiasmo sobre seu próximo lançamento com o produtor lo-fi grego Jules Hiero.

“Fizemos contato em um show da Ana Frango Elétrico e um dia ele me ligou e disse ‘ei cara, o que você está fazendo hoje?’ Eu estava em casa pensando… ‘quem é esse maldito grego, cara? O que ele quer!?’ Mas eu o convidei para ir à minha casa em Santa Teresa, e ele veio com uma fita cassete com umas batidas que fez. Eu disse: ‘Vamos ouvir’. Eu coloquei no meu aparelho cassete, ele olhou para mim chocado e disse: ‘Eu nunca tinha ouvido minhas coisas naquela fita antes porque ninguém tem um toca-fitas’. Eu coloquei e pensei ‘uau, é diferente, cara!’ E, então, gravamos um álbum aqui no meio do ano. Um grego que mora em Viena trabalhando com um brasileiro maluco!”

O maluco brasileiro ri com vontade e nós terminamos, fazendo planos para futuras viagens ao Brasil e à Inglaterra. Com a menção de uma turnê na Inglaterra, território de sua gravadora, a empolgação de Neves é incontível. “É um sonho ir para a Inglaterra, um sonho. Pessoal, vamos para Londres!”, exclama já fazendo planos na cabeça. 

Ele sorri e, como se fosse uma deixa, pronuncia seu bordão. “Vamos fazer isso! A pegada agora é essa!”

A Pegada Agora É Essa (This Sway Now) foi lançado pela Far Out Recordings em 19 de fevereiro de 2021.

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Licença Creative CommonsTraduzido e publicado sob Licença Creative Commons – Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional. Leia o original em Sounds And Colours.

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