Se você trabalha com música deve gastar algum tempo aprendendo um pouco a respeito de direito autoral no Brasil e no mundo. Seja para compreender como proteger suas próprias criações, seja para utilizar corretamente a criação de outros compositores. Para ajudar a espalhar o conhecimento, iniciamos uma série de artigos baseados no livro O DOMÍNIO PÚBLICO NO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO – UMA OBRA EM DOMÍNIO PÚBLICO, de Sergio Branco.
Você pode usar obras em Domínio Público gravando suas próprias versões de músicas, adaptando trechos destas músicas para criar sua própria composição, pode usar trechos idênticos, pode musicar textos de outros autores, pode usar fotografias e obras de arte para fazer as capas dos seus discos, tudo isso sem infringir nenhuma lei e sem ter que pedir autorização de ninguém. Há muito material criado no mundo e que pode ser usado por você na sua música. Mas não adianta procurar por aí qual é o órgão que classifica as obras como sendo de domínio público ou não. Isso não existe. É você que deve saber se pode ou não usar determinada composição. Além, é claro, de você sempre poder pedir autorização aos autores, se possível.
Nós transcreveremos o texto do Sergio com algumas adaptações e esta série de artigos é para quem quer realmente aprender, não para quem quer respostas curtas – infelizmente não há. Saia na frente conhecendo mais sobre as regras do Direito Autoral e Domínio Público. Nós vamos te ajudar.
INTRODUÇÃO
Em outubro de 2009, a documentarista Verena Kael foi à Biblioteca Nacional, na cidade do Rio de Janeiro, com o propósito de obter cópias de algumas fotos para o documentário que estava produzindo, sobre prostituição feminina no Rio de Janeiro, no início do Século XX. Após pesquisar o arquivo da Biblioteca Nacional, solicitou a uma funcionária do órgão a reprodução de duas fotos publicadas em um jornal carioca no ano de 1937. A funcionária explicou que a cópia de cada uma das fotos seria fornecida pelo valor de R$ 2,00 e então indagou Verena a respeito do uso que pretendia dar às reproduções. A documentarista explicou que iria usar as imagens em um documentário de curta-metragem. Ao ouvir a resposta, a funcionária lhe disse que, sendo assim, não seria possível atender seu pedido. Se o uso se limitasse à ilustração de um trabalho acadêmico – como monografia, dissertação ou tese –, as cópias poderiam ser fornecidas, mas não para uma obra audiovisual.
Verena, então, perguntou que diferença havia entre os usos e tudo que ouviu foi que para se valer daquelas fotografias em obra não acadêmica, ela deveria fazer a solicitação diretamente ao titular dos direitos autorais3 sobre o material – a empresa que havia adquirido o acervo do jornal, que não mais existia.
Hesitante quanto à veracidade das informações recebidas, Verena escreveu e-mail para os pretensos titulares dos direitos autorais sobre as fotos de seu interesse e soube que poderia obter as reproduções desejadas ao preço de R$ 65,00 cada uma – e isso lhe daria o direito de usá-las em seu filme. Ainda que inconformada com o valor cobrado, Verena se dirigiu aos donos do acervo do jornal que publicara as fotos originalmente. Após negociação, e alertada a tempo a respeito do fato de as fotografias estarem em domínio público, Verena Kael conseguiu obter cópia das obras gratuitamente, vindo posteriormente a usá-las em seu filme (seu trabalho de pesquisa resultou nos filmes “… Aquelas Mulheres…”, finalizado em 2010, e “O Caso Pierrot”, ainda em produção quando este artigo foi escrito).
A narrativa acima pode, ser bastante elucidativa acerca do propósito deste artigo. O domínio público, verdadeiro manancial cultural de qualquer civilização, é certamente bem pouco compreendido no Brasil. Até onde pudemos averiguar, não há obras acadêmicas dedicadas a lhe traçar os contornos ou explicar seu fundamento – social, econômico ou jurídico. Mesmo internacionalmente o tema é muito pouco explorado, resultando em trabalhos escassos e incompletos. Em uma análise sucinta dos fatos narrados acima – e pressupondo a precisão de todas as informações prestadas, algumas observações podem ser bastante interessantes.
Vejamos:
A lei brasileira de direitos autorais (Lei 9.610/98, ou apenas “LDA”) data de 1998 e prevê que as obras protegidas em seu âmbito geram para seu autor o surgimento de dois feixes de direitos tão logo uma obra protegida por direitos autorais seja criada: os de natureza moral e os de natureza patrimonial. Os primeiros têm por objetivo primordial vincular o autor à sua criação. Já os direitos ditos patrimoniais são aqueles que autorizam a exploração econômica da obra criada. Por diversos motivos, que discutiremos depois, os direitos patrimoniais vigoram por determinado período, ao fim do qual se extinguem. O tempo padrão de vigência dos direitos autorais patrimoniais no Brasil é hoje de 70 anos contados a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao da morte do autor. No entanto, não é este o prazo de proteção de que gozam os fotógrafos. De acordo com o art. 44 da LDA, “o prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre obras audiovisuais e fotográficas será de 70 (setenta) anos, a contar de 1º de janeiro do ano subsequente ao de sua divulgação”. Isso significa, portanto, que fotografias publicadas em 1937 estariam fora do âmbito de proteção dos direitos autorais (patrimoniais) desde 2008.
Quais as consequências dessa ausência de proteção? Expirado o prazo previsto na LDA, as obras ingressam no domínio público. Podemos dizer que o domínio público representa o fim dos direitos patrimoniais do autor, fim do direito de cobrar pelo uso da obra, normalmente em razão de ter sido atingido o prazo previsto em lei. Em outras palavras, as obras podem ser utilizadas por toda a sociedade independentemente de licença por parte de seus autores originais, seus sucessores ou outros titulares de direitos autorais. Isso inclui o uso comercial e não há qualquer distinção legal quanto ao uso que se pretenda dar às obras até então protegidas. Podemos então afirmar que as fotografias por que Verena Kael havia se interessado estão em domínio público desde janeiro de 2008 e que a Biblioteca Nacional não se deu conta do fato, o que acarretou a negativa do pedido da documentarista?
Não, o caso é ainda mais grave.
A LDA, aprovada em fevereiro de 1998, entrou em vigor em junho do mesmo ano. Até então, havia vigorado a lei 5.988/73. Ao contrário da LDA, que prevê período de proteção de 70 anos, a lei anterior dispunha, em seu artigo 45, que “também de sessenta anos será o prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre obras cinematográficas, fonográficas, fotográficas, e de arte aplicada, a contar do 1° de janeiro do ano subsequente ao de sua conclusão”.
Ora, sabendo-se que as fotografias haviam sido publicadas em 1937, o prazo de proteção começou a ser contado em janeiro de 1938. Sessenta anos depois, isto é, em janeiro de 1998, ainda estava em vigor a lei 5.988/73, que previa prazo de proteção de sessenta anos – que se esgotaram exatamente um mês antes da aprovação da LDA pelo Congresso Nacional. Dessa forma, as fotos que despertaram o interesse de Verena Kael e a levaram a ir à Biblioteca Nacional estão em domínio público desde 1998. Conforme mencionado acima, segundo nossa lei autoral, uma vez que a obra entre em domínio público, pode ser utilizada por toda a sociedade, independentemente de autorização, licença ou pagamento de direitos autorais. É uma forma de se estimular a criação intelectual e diversos são os fundamentos para isso (tanto de ordem legal quanto de ordem social ou econômica). Por isso, a limitação ao uso de obras em domínio público é ato incorreto. E, obviamente, é a última conduta que alguém espera de um dos órgãos públicos que mais deveriam estar preocupados com o acesso ao conhecimento, como é o caso da Biblioteca Nacional.
Isso significa que para o fornecimento da cópia da fotografia não se poderia cobrar qualquer valor? Não. Como se verá adiante, a cobrança pelo acesso é legalmente possível, mas é incompreensível que haja discriminação quanto ao uso que se pretende fazer da obra. Exceto por alguns poucos casos, o usuário pode fazer com a obra em domínio público o que quiser. No entanto, é espantoso que a Biblioteca Nacional trate o domínio público com tão pouca deferência. Mas acreditamos que não seja uma conduta exclusivamente institucional.
O domínio público vem sendo pouquíssimo estudado e muito mal compreendido. O caso aqui apresentado é apenas uma ilustração de como a falta de entendimento acerca da matéria pode gerar prejuízos culturais. Como síntese dos problemas levantados, podemos apontar:
- Verena Kael não pôde obter cópia das fotos em um órgão que poderia licitamente tê-las fornecido, ainda que cobrando pelo acesso;
- a Biblioteca Nacional fez distinção para o uso de obra em domínio público onde essa distinção legalmente não existe;
- aparentemente a Biblioteca Nacional está orientando de maneira equivocada seus usuários quanto à necessidade de pedir autorização a terceiros para uso de obras em domínio público, na medida em que os direitos autorais patrimoniais já não são protegidos;
- o valor cobrado de Verena Kael para obter cópia das obras em domínio público foi superior àquele praticado pela Biblioteca Nacional.
Se isso em si mesmo não chega a ser um fato abusivo (em regra, cada um pode cobrar o quanto quiser pelo acesso às obras), a recusa da Biblioteca Nacional retira da documentarista o direito de escolher pagar mais ou menos por uma reprodução com maior ou menor qualidade.
Por outro lado, a ampla difusão de obras em domínio público (com limites bem definidos e sua função respeitada) pode ter como consequência, entre outras:
- maior acesso à cultura e à informação, promovendo desenvolvimento educacional e cultural do país;
- maior efetividade ao princípio constitucional da liberdade de expressão;
- crescimento econômico por conta da maior circulação de obras culturais;
- maior segurança jurídica quanto ao uso de obras de terceiros que tenham ingressado em domínio público.
Como você pôde ver, mesmo os órgãos públicos podem orientar erradamente quem busca informação. Por isso é tão importante conhecer a lei, para que ela fique do seu lado. Não perca os próximos capítulos, há muita informação vindo por aí.
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